O jornal O Globo publica a opinião de dois colunistas situados a léguas de distância da esquerda e de forças progressistas e, portanto, “insuspeitos”, sobre a temática da segurança. Transcrevo aqui porque os dois textos ajudam a compreender o debate que ora se trava em torno do assunto. (LS)
A direita
e a segurança
A direita tomou para si a pauta da segurança, mas
não apresenta políticas eficazes de combate a este problema que tanto aflige a
população
Míriam Leitão
No Brasil, há um mito de que a direita sabe como
fazer política de segurança. A extrema direita governou o país por quatro anos,
de 2019 a 2022, e não apresentou qualquer proposta boa. Ao receber das mãos
de Hugo Motta a
relatoria do projeto do governo contra as facções criminosas, teve nova chance.
Foi um fiasco. O secretário licenciado de segurança de São Paulo, Guilherme Derrite,
fez um relatório inicial perigoso porque enfraquecia a Polícia Federal, além de
abrir um flanco para ações militares de outros países em território brasileiro.
Quatro recuos depois, o relatório ainda tem defeitos.
Quando governou o Brasil, o ex-presidente Jair Bolsonaro propôs
o quê? O excludente de ilicitude e o acesso às armas. “É escancarar a questão
do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado. Por isso eu quero, ministro da
Justiça, ministro da Defesa, que o povo se arme”, disse
Bolsonaro na reunião ministerial de 22 de abril de 2020. Foi o bordão do seu
governo. Em 10 de agosto de 2022, disse: “Comprem suas armas. Isso também está
na Bíblia. No Pedrão”.
Em dezembro de 2018, havia 351 mil armas nas mãos
dos clubes de atiradores e colecionadores. Em dezembro de 2022, eram 1 milhão e
261 mil. Quase um milhão de armas a mais, muitas dessas foram acabar na mão do
crime organizado. A obsessão pelo armamentismo não era uma política de
segurança, mas parte do projeto autoritário, pelo qual está indo para a prisão.
Subir um morro, matar 117 pessoas, perder quatro
policiais, não encontrar o alvo principal, e deixar os corpos para serem
resgatados pelos moradores não é política de segurança. A última vez que no Rio
houve alguma esperança de existir um modelo foi nas UPPs. Originalmente foi
pensada para libertar os territórios do jugo dos bandidos e, em seguida, ocupar
o espaço com ações do Estado. Faltou a segunda parte.
O problema do controle territorial pelo crime é
gravíssimo. Segundo o Mapa dos Grupos Armados, feito em parceria pelo Instituto
Fogo Cruzado e o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade
Federal Fluminense, dos 2,5 mil km² da área metropolitana, 466 km², ou seja,
18%, estão sob o domínio de algum grupo armado. Do total, metade está com o
Comando Vermelho, 38,9% com a milícia, e o resto com outros bandos de
traficantes.
O assunto é tão sério que a cooperação entre as
forças do Estado deveria ser natural, em vez de virar briga política como vimos
nos últimos dias. É inaceitável submeter as pessoas à tirania de facções de
traficantes e de milícias. A reação da população, que em pesquisas feitas no calor
da hora, reagiu em favor da operação, deveria ser entendida pelo que ela é: o
país não suporta mais a aberração da ocupação territorial por bandidos e
milicianos. Não é um apoio a que esse tipo de ação se torne rotina e assuma o
espaço de uma real política de segurança.
O governo Lula apresentou
duas propostas. A PEC da Segurança cria canais de cooperação entre o governo
federal e as administrações estaduais. O PL Antifacção endurece o combate às
facções criminosas. A PEC tem sido ignorada pela oposição. O governador Cláudio
Castro reclamou da falta de apoio de Brasília, mas sempre foi contra a PEC que
propõe atualizar a Constituição, que entrega essa atribuição aos estados. Desde
1988, o crime atravessou todas as fronteiras entre estados e do país.
Precisamos de todas as forças legais. O país não pode perder tempo com a briga
por protagonismo. O assunto é grave demais.
Mesmo com a vinda ao Rio do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski,
Castro preferiu a politização. Chamou os “governadores de direita”, como os
definiu, para reuniões e a assinatura de um pacto de cooperação. Não pode haver
cooperação com a Bahia ou o Ceará?
No Legislativo, a bancada da direita que se dedica ao tema tem aprovado, ou ameaça aprovar, ideias bem ruins. Só nas últimas semanas, a Comissão de Segurança da Câmara aprovou a suspensão da portaria que criou o Núcleo Estratégico de Combate ao Crime Organizado, e a do Senado aprovou a revogação do decreto que regulamenta o uso da força e dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos profissionais de segurança pública. A da Câmara se mobiliza para passar a revogação do decreto que criou a Força Nacional. A direita no poder não apresentou soluções, na oposição combate as ideias que chegam ou as estraga, como Derrite tentou fazer. (Com Ana Carolina Diniz)
Derrite contra a
Polícia Federal
Secretário de Segurança de São Paulo produziu um
monstrengo revelador dos interesses estabelecidos na máquina da segurança do
país
Elio Gaspari
Se Guilherme Derrite fosse
um transeunte laçado na Praça dos Três Poderes para redigir um projeto de
combate ao crime organizado, teria sido compreensível a barafunda que ele
produziu com as várias versões de seu relatório para o projeto de lei contra as
facções criminosas.
Infelizmente, Derrite é um
veterano policial e secretário de Segurança do governador Tarcísio de Freitas,
possível candidato a presidente da República. Mais: Derrite é um deputado
federal e provável candidato ao Senado em nome do que seria um desejo do
eleitorado por mais segurança. Foi laçado pelo presidente da Câmara, deputado
Hugo Motta, para relatar o projeto de lei contra as facções criminosas.
Com quatro versões, Derrite produziu um monstrengo
revelador dos interesses estabelecidos na máquina da segurança do país.
Tome-se como exemplo a limitação que Derrite quis
impor à Polícia Federal (PF). Seu primeiro relatório estabelecia que a PF só
poderia investigar depois de ter havido uma solicitação do governador do
estado. Gracinha. Existem crimes federais, como o tráfico de armas e de drogas,
mas a PF dependeria de uma licença dos governadores.
Se esse sistema existisse nos Estados Unidos do
século passado, teriam continuado as execuções de ativistas que lutavam contra
a bandidagem racista de estados do Sul. Quem viu o filme “Mississippi Burning”
sabe do que se trata. A bandidagem racista operava com o apoio de governadores,
juízes e policiais. Foi a Polícia Federal quem desarmou as tramas.
Lá, a Federal chama-se Federal Bureau of Investigation,
o FBI. Foi dirigido de 1924 a 1972, quando morreu, por J. (de John) Edgar
Hoover. Sujeito detestável, grampeava inimigos, chantageava políticos e
presidentes. Solteirão misógino foi um mau exemplo, mas criou uma instituição,
robusta e honesta (à sua maneira). Hoover foi um mau exemplo, mas criou e
protegeu uma instituição exemplar.
Com esse nome, a Polícia Federal brasileira surgiu
em 1967. Desde então, ela se tornou, de longe, a mais respeitada instituição
policial do país. Derrite queria que ela pedisse licença aos governos estaduais
para desempenhar suas funções. O deputado-secretário é capitão da reserva da PM
paulista, onde fez fama na tropa de elite da Rota.
O Primeiro Comando da Capital (PCC) operava sua
rede de postos de gasolina, empresas e fintechs de São Paulo há décadas. Graças
à Operação Carbono Oculto, do Ministério Público e da Polícia Federal, parte
dessa máquina foi desmontada, isso sem um só tiro. A Operação Escudo da polícia
de Tarcísio e Derrite matou 28 pessoas num só mês de 2023. Quase todos pretos
pobres e moradores da periferia.
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Leia também: A economia do crime
organizado https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/economia-do-crime.html

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