A loucura de um democrata no próximo romance
Trechos do romance “O que mantém um homem vivo”
Urariano Mota/Vermelho  
Divulgo a seguir trechos do romance “O que mantém um homem vivo” em páginas ainda inéditas.
“A sua discussão com inimigos invisíveis, era bem diferente. A interpretação era mais crucial, batia com a perseguição que estaria sofrendo. Terrível. Então, ao saber de seus surtos, não atinávamos para um caráter profético, nem mesmo a compreendíamos como uma relação clara entre Insanidade e Ditadura. Estávamos na fase posterior da democracia, enquanto o louco gritava que ia ser preso, torturado e morto. Como se fosse antes, como nos dias de angústia atravessados. Mas não resolvidos. Então ele, para todos nós, estava apenas em pânico. Observo o quanto somos parciais, protetores dos amigos. Ele estaria apenas com surtos de pânico. Nada de loucura. Surtos, que logo passariam.
Eu havia ligado para ele, que estava sensato, me pareceu, e considerou o que antes eu havia publicado sobre o seu estado emocional com um comentário:
– É aquilo mesmo.
No texto, eu lhe perguntava se estava trabalhando em novas turmas e pesquisas fora da universidade onde trabalhara boa parte da sua vida. Ele me respondeu que não. “Mas você não pode se ausentar”. A isso ele respondeu que as turmas de hoje, mais jovens, dominavam novas ferramentas produzindo muito bem (sem ele, me pareceu insinuar). Então eu lhe disse que o seu conhecimento orgânico não se encontrava em feiras livres. E que o seu saber, acumulado sob tantos obstáculos, não estava no google.
– Não está no google… – ele me repetiu, como a pensar em voz alta. Se fosse hoje, teria acrescentado: nem tampouco na Inteligência Artificial.
Então ali, no telefonema, ele estava lúcido, total e absolutamente lúcido, pensei. Mas fez um comentário curto e entrou em silêncio. Estaria, pergunto agora, a escutar vozes como naquele dia do jardim, e se fechava para melhor ouvi-las? “Não me atrapalhe!”, poderia ter gritado de volta. Ele se fechava à custa das poderosas drogas medicadas? Perguntas que só a reflexão posterior ousa fazer. Mas ele estava no fim, e de tal forma que não entrava em novos meios de amizade e convivência. Era um fim previsível, mas como pode ser previsível a morte de um amigo? Até mesmo diante da noticia recuamos.
Súbito, num acontecimento inverossímil minha mulher vem e me fala:
– Eu tenho que lhe falar. É uma notícia muito triste, mas eu tenho que lhe falar.
– O que foi? O que foi que aconteceu? – E já desconfio ver o chão da terra se abrir sob os meus pés. Que desgraça teria ocorrido? – Fale. Eu estou preparado.
– Marcão faleceu.
– O quê? Eu não ouvi direito. Quem?
– Marcão.
– Mas como? Pode ser um engano.
– Ligaram lá pra casa.
– Vamos ligar pra ele.
– O corpo já está no necrotério.
Assim também, os sinais do amigo estavam dados. Mas como só ele os via, estava louco, diziam os inimigos. Estava com alguns traços de paranoia, falavam os amigos. Mas sua esposa, tão acostumada ao inferno doméstico em que suas vidas se tornou, de passagem informava que havia escondido todas as facas da casa. “Para não ser esfaqueada?”, nem quisemos perguntar. Soubemos da informação em mensagens e calamos. Ela queria dizer, claro, que ele poderia matá-la em um acesso de raiva. Eram dias depois da morte do grande cineasta Eduardo Coutinho, esfaqueado pelo filho esquizofrênico. Ele estava esquizofrênico, essa era a definição mais próxima do estado do amigo. Mais que passageiros surtos, o seu pavor se inseria em tal doença. E ele não era um “doido manso”, como as pessoas do povo chamam os loucos que não são perigosos. Esquizofrênico, cresceu em nós uma percepção para as vozes que ele ouvia, escutava. “Escondi todas as facas”. A esposa não sabia que a resistente inteligência dele podia transformar em arma os objetos mais inofensivos. Ele poderia matá-la sob cadeiradas, panelas, mesa, computador arremessado na cabeça. Mas o medo da esposa era de facas, cortantes, perfeitas, que faziam jorrar sangue. Nada de choques violentos na cabeça, nada de asfixia por estrangulamento. O problema então, num conhecido desvio que tomamos como um consolo, o problema eram as facas. Se elas somem, some a morte. Isso não era uma piada. Ainda que possamos sorrir, discretamente sorrir. Meu Deus, como é típico o último dia de um amigo. Como se disfarça o seu fim. Ele gritava:
– Não abra a porta! Eles vêm me prender! Você ouviu? Escutou o som? Olhe os passos chegando. Eles estão cercando a porta do apartamento. Cuidado, eles estão de metralhadora. Eles estão de fuzil e pistola. Não abra! Me tranque no quarto. Me dê os remédios agora. Todos! Eu não vou morrer de tortura! Eu não vou morrer de espancamento. Eu não vou morrer de choque elétrico. Eles não vão me matar sufocado no tanque. Não! Eles não vão arrancar os meus olhos. Eu estou vendo e não posso ficar sem os olhos. Nunca! Estou vendo! Eles não vão me arrastar feito gado, e depois me matarem com tiros na cabeça. Eles não vão inventar que morri em tiroteio. Eu não sou comunista! Eu não sou terrorista. Não! Me esconda agora.
E corria pelo apartamento:
– Eu vou pular pela janela.
Então a esposa, com uma voz mansa por esforço, chegava para ele e lhe dava comprimidos receitados pelo psiquiatra. Hoje notamos que a droga amenizava os gritos do seu terror. Os personagens vistos antes voltavam na alucinação dos últimos tempos. Que ia ao quadro geral da ditadura, que conhecera de relatos sobre conhecidos mortos. E de tal modo os conhecia, e tamanho era o terror, que ele nunca nos falava. Vivia aquele papel de alienado, engraçado, cômico, sem envolvimentos. Apenas carregava um pavor dos assassinatos, em que poderia ser um deles. Mas os médicos garantiam que os remédios prometiam-lhe uma vida mais saudável. Shit! Ele iria interromper os gritos, o desconforto da companheira, os suicídios que não se completavam pela janela do apartamento. Era como uma Clozapina contra a ditadura. “Uma camisa de força suave”, ele diria, se pudesse fazer rir. Mas não. Se f osse um popular, seria internado em manicômio, levado choques na cabeça, o tratamento bárbaro que ainda se pratica. Ou então, antes de ser internado, seria morto pela polícia, porque estaria correndo ao ver uma viatura, e com tal atitude suspeita, bala no ladrão. Para sua felicidade, com gentilezas clínicas que o dinheiro paga, o nosso amigo escapou de piores inimigos. Mas voltavam nos intervalos da cura.
– Eles querem me matar! Eles estão me procurando….
Ele enlouquecia pela verdade da perseguição aos democratas em tempo de democracia. A verdade dos crimes impunes de torturadores até hoje. A verdade dos sinais que ele captou, tudo era prova, se podemos falar assim fora de uma ciência física. Toda a sua loucura era afirmação da maior sanidade, que nós, os sãos, não víamos nem queríamos ver. Compreendo agora o quanto a sua loucura vinha a ser incômoda e perigosa, além das facas que sua esposa escondia para evitar que fosse cortada em um surto. Muito além dos seus gritos que espantavam a vizinhança e faziam comentários à passagem da esposa. Mas ainda aqui não digo tudo. Ao aprofundar o verdadeiro, temos que selecionar a realidade. O mais importante é descobrir no grão da sua loucura uma resistência extrema aos fascistas. Ele, no fim, era um homem vivo, sério, digno. Mas num grau que jamais esperou. Se alguém lhe predissesse que no futuro ele enlouqueceria, a sua reação seria a mais sonora gargalhada.
O seu fantasma se tornou a ditadura que às vezes lhe falava em vozes. Nós, os saudáveis, não víamos nem queríamos conhecer. Pois quem deseja reviver um pesadelo? No entanto, ainda que não o quisesse, ele revivia o terror de Estado. E por isso gritava tomado de pavor:
– Eles vêm me buscar. Estão batendo na porta!”
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Leia também: "Nossa marcha", Vladímir Maiakóvski https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/palavra-de-poeta_37.html

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