Um comunista que não
gostava de Tolstói
Marco Albertim, no Vermelho
Um comunista que perdera o rumo da luta de
classes, inda que sem o admitir, viu-se, com o tempo, sem o traço de afago no
rosto; o mesmo com que, sem engulhos nas entranhas, recrutara operários para o
seu Partido.
Hoje, tem os cabelos brancos e finos feito um véu de musselina. Assenta no
rosto, no entanto, o que supõe ser o antigo ódio à burguesia, tão ao gosto do
mesmo que contraíra quando ainda moço, nos promitentes anos de militância. Não
faz pouco caso da dialética materialista, visto que seu perfil, e está certo
disso, mantém-no distante, avesso às seduções do convívio com a burguesia
proprietária dos meios de produção.
- Parasitas! - grita de vez em quando, mesmo sem a provocação de um eventual interlocutor.
O paletó de linho que usa nos ombros, um tempo raquíticos, deixa-o livre para manusear os livros nas prateleiras de lojas do sebo. Não são mais raquíticos os ombros; desde que emergira da clandestinidade, sob o furor da ditadura, Proteus Argamassa - convém chamá-lo assim, porque, a exemplo de alguns, tivera a militância limitada no tempo, inda que longeva - soube recuperar a rijeza das omoplatas e do fêmur.
- Proteus!
Virou-se rápido, mesmo tendo reconhecido a voz esganiçada, mas já dando sinais de fraqueza, do livreiro Melquisedec.
- Não me diga que tem novidades. Um sebista não tem novidades, tem raridades. Mas fale...
- Apareceu-me uma raridade tão antiga quanto nova.
Proteus Argamassa mirou o livreiro nos olhos, tentando distinguir alguma trapaça no cálculo de suas palavras.
- Veja!
- Li na juventude. Foi-me recomendado por Diógenes Arruda. Volto a ler por dois motivos: o marechal de aço não sai da memória dos comunistas, e Diógenes Arruda desfrutou do convívio com Stalin.
Pagou ao livreiro. Não pôs o livro debaixo de um dos braços; o gesto seria demasiado estudantil para um homem de sua estirpe; segurou-o com a palma da mão direita fechada; a da esquerda, feito um guarda bolchevique, protegeu a primeira sem a excitação de novatos.
Sentaram-se. A sombra da Praça do Sebo, com o mau cheiro vindo dos sanitários, junto com a ramagem de capim que cresce sem ordem nos jardins elevados, incita o pensamento. Os paredes borradas de musgos, no prédio à frente e no vizinho, acentuam a decadência do lugar. Na marquise do Edifício Continental, o capim mistura-se ao tom róseo desbotado das paredes. Ali, Proteus Argamassa encomendara os primeiros paletós que usara, junto a costureiros não de luxo, mas acostumados a sentirem-se objetos das urdiduras de vaidade da classe média.
- Foi ali que me recrutaram para o Partido - disse Proteus, apontando para o prédio, outrora reduto de alfaiates.
- Quem o recrutou?
- Diógenes Arruda. Recrutou-me e em seguida arrebatou Teresa Costa Rego.
- Arrebatou!?
- Desapropriou a bela Teresa dos salões da burguesia.
Quando se levantou para sair, Melquisedec deu-lhe um exemplar antigo d'A Classe Operária.
- Ah... - agradeceu Proteus.
- Continua sem gostar de Tolstói?
- Continuo.
- Mas ele doou suas terras aos camponeses...
- Mas não renunciou ao título de conde!
- Parasitas! - grita de vez em quando, mesmo sem a provocação de um eventual interlocutor.
O paletó de linho que usa nos ombros, um tempo raquíticos, deixa-o livre para manusear os livros nas prateleiras de lojas do sebo. Não são mais raquíticos os ombros; desde que emergira da clandestinidade, sob o furor da ditadura, Proteus Argamassa - convém chamá-lo assim, porque, a exemplo de alguns, tivera a militância limitada no tempo, inda que longeva - soube recuperar a rijeza das omoplatas e do fêmur.
- Proteus!
Virou-se rápido, mesmo tendo reconhecido a voz esganiçada, mas já dando sinais de fraqueza, do livreiro Melquisedec.
- Não me diga que tem novidades. Um sebista não tem novidades, tem raridades. Mas fale...
- Apareceu-me uma raridade tão antiga quanto nova.
Proteus Argamassa mirou o livreiro nos olhos, tentando distinguir alguma trapaça no cálculo de suas palavras.
- Veja!
- Li na juventude. Foi-me recomendado por Diógenes Arruda. Volto a ler por dois motivos: o marechal de aço não sai da memória dos comunistas, e Diógenes Arruda desfrutou do convívio com Stalin.
Pagou ao livreiro. Não pôs o livro debaixo de um dos braços; o gesto seria demasiado estudantil para um homem de sua estirpe; segurou-o com a palma da mão direita fechada; a da esquerda, feito um guarda bolchevique, protegeu a primeira sem a excitação de novatos.
Sentaram-se. A sombra da Praça do Sebo, com o mau cheiro vindo dos sanitários, junto com a ramagem de capim que cresce sem ordem nos jardins elevados, incita o pensamento. Os paredes borradas de musgos, no prédio à frente e no vizinho, acentuam a decadência do lugar. Na marquise do Edifício Continental, o capim mistura-se ao tom róseo desbotado das paredes. Ali, Proteus Argamassa encomendara os primeiros paletós que usara, junto a costureiros não de luxo, mas acostumados a sentirem-se objetos das urdiduras de vaidade da classe média.
- Foi ali que me recrutaram para o Partido - disse Proteus, apontando para o prédio, outrora reduto de alfaiates.
- Quem o recrutou?
- Diógenes Arruda. Recrutou-me e em seguida arrebatou Teresa Costa Rego.
- Arrebatou!?
- Desapropriou a bela Teresa dos salões da burguesia.
Quando se levantou para sair, Melquisedec deu-lhe um exemplar antigo d'A Classe Operária.
- Ah... - agradeceu Proteus.
- Continua sem gostar de Tolstói?
- Continuo.
- Mas ele doou suas terras aos camponeses...
- Mas não renunciou ao título de conde!
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