Relatório golpista de partido de Bolsonaro tem erros e
lacunas; entenda ponto a ponto
Diferentemente do que aponta
legenda, falha apontada não impede identificação e fiscalização de urnas
Renata
Galf, Folha de S.Paulo
O relatório utilizado pelo partido do atual presidente Jair Bolsonaro,
o PL, para pedir a invalidação de
votos depositados em urnas de modelos anteriores a 2020 tira
conclusões incorretas a partir dos dados identificados, segundo especialistas
em computação consultados pela Folha.
O PL questiona a ausência do código de série das urnas no
"diário de bordo" desses equipamentos mais antigos. Alega que, com
isso, não é possível fiscalizá-las. Há, porém, outros dados e formas para
identificar essas urnas.
Ou seja, diferentemente da afirmação do parecer, a falha
apontada não impossibilita a vinculação do arquivo gerado pela urna (conhecido
como log da urna) com sua urna física correspondente, argumento base do relatório do
PL.
Na comparação feita por um especialista, é como se um um órgão
estatal, por um erro, não tivesse em sua planilha os dados do INSS de um
cidadão, mas tivesse RG e CPF —sendo possível, portanto, identificá-lo.
Além disso, o documento do PL possui lacunas ao ignorar o
primeiro turno da eleição e a distribuição dos diferentes modelos de urnas
dentro de um mesmo estado.
EM QUE SE BASEIA A AÇÃO DO PL?
A ação apresentada pelo PL nesta terça-feira (22) ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) é baseada em
relatório do Instituto Voto Legal, que não foi entregue ao tribunal, mas tem
vários de seus trechos reproduzidos na ação. Uma versão parcial também circulou
na última semana.
Na ação, o PL pede a invalidação de votos depositados em urnas
de modelos anteriores a 2020. O partido aponta que, no log dessas urnas, na
coluna onde deveria constar o código de identificação único de cada urna há um
outro número que se repete.
Cada urna gera diferentes arquivos referentes a cada turno. Um
deles é o log das urnas, que funciona como uma espécie de diário de bordo ou
ata daquela urna. Nele são registrados todos os eventos que acontecem nela:
como ter sido ligada, desligada, se ela apresenta baixa carga de bateria ou se
registra uma eventual falha.
Leia
também: Ação golpista mal ensaiada https://bit.ly/3FJzshY
Se organizado numa planilha, a composição de um log da urna
seria com várias linhas, sendo cada uma delas um desses eventos, e junto de
cada evento aparecem algumas colunas —uma delas é esse código identificador da
urna.
O
QUE O PL AFIRMA COM BASE NISSO?
O parecer alega que, sem esse código, não seria possível
vincular o arquivo gerado pela urna (o log da urna) à sua urna física
correspondente, no caso das urnas de modelos anteriores a 2020.
"Como há evidências de mau funcionamento das urnas
eletrônicas que geraram arquivos log com erros graves no campo do código de
identificação da urna, fica comprometida a certeza dos resultados gerados
nestas urnas e a garantia de integridade dos demais arquivos gerados, pelas
mesmas urnas", diz trecho do relatório que consta na representação.
Apesar de o problema apontado ter ocorrido nos logs de ambos os
turnos e o parecer considerar que os erros "são graves", o PL, que
elegeu a maior bancada do Congresso no primeiro turno, pede a invalidação
apenas de votos do segundo turno.
POR
QUE A ALEGAÇÃO DO PL É FRÁGIL?
O erro no registro dos logs não representa um problema grave,
pois há outras formas de verificar que um log pertence a determinada urna,
afirma o professor de engenharia da computação Marcos Simplício, da Escola
Politécnica da USP e do Larc (Laboratório de Arquitetura e Redes de
Computadores).
"O que importa não é a ausência ou existência de bugs. É o
quanto aquele bug gera um problema de fato", diz Simplício.
Também de acordo com Bruno Albertini, que é integrante da
Comissão de Transparência das Eleições do TSE e professor do departamento de
Engenharia de Computação da Escola Politécnica da USP, o erro encontrado no log
da urna não é crítico e não impossibilita a vinculação do log com a urna.
"Ao contrário do que afirma o relatório, há outras maneiras
de vincular o log com a urna. Também a urna gerar um log com um identificador
inválido não invalida o arquivo todo e não caracteriza falha de funcionamento",
diz Albertini.
QUAIS AS FORMAS DE VINCULAR O LOG DA URNA À URNA
CORRESPONDENTE?
Um dos meios de fazer tal vinculação é por meio dos demais dados
que constam no log da urna, como o número da zona e da seção eleitoral, além do
código de carga da urna. Todos essas informações constam tanto no boletim de
urna quanto no log .
Além disso, os especialistas apontam o fato de os arquivos da
urna serem assinados digitalmente como uma garantia ainda mais robusta. "A
urna só assina o seu log e a assinatura é suficiente para garantir com
segurança criptográfica que o log veio daquela urna de fato", diz
Albertini.
Uma forma que demandaria mais trabalho, seria a verificação in
loco das urnas por amostragem. A urna armazena os dados da votação em duas
mídias: uma memória interna e outra externa (tipo um pen drive). Assim, é
possível verificar, por exemplo, se os logs salvos na memória interna das urnas
usadas no pleito correspondem aos dados disponibilizados no site do TSE.
O QUE MAIS O PL IGNORA?
Nessas eleições foram usados seis modelos de urnas diferentes, o
modelo 2020 estreou este ano. Além dele, foram usadas urnas 2009, 2010, 2011,
2013 e 2015 –esses números correspondem ao ano da licitação.
Um ponto ignorado pela representação do PL é a análise sobre
como as urnas dos diferentes modelos foram distribuídas dentro de um mesmo
estado ou de acordo com a quantidade de eleitores. Ela afirma apenas que as
urnas de modelo 2020 foram "distribuídas aparentemente de forma
proporcional e equitativa pelo país pela própria Justiça Eleitoral".
A partir disso, conclui que "os votos válidos e auditáveis
do segundo turno" atestariam resultado diferente e dariam 51,05% dos votos
a Bolsonaro. O documento indica que as urnas 2020 seriam as únicas que teriam
"elementos de auditoria válida e que atestam a autenticidade do resultado
eleitoral com a certeza necessária – na concepção do próprio Tribunal Superior
Eleitoral".
Documento publicado por pesquisadores da USP e da UFSCar
(Universidade Federal de São Carlos), na semana passada, mostrou, por exemplo,
que as urnas novas foram mais comumente usadas em seções com mais de 400
eleitores —ao rebater afirmações infundadas feitas na live do argentino
Fernando Cerimedo, que também levantou dúvidas sobre urnas dos modelos mais
antigos. [Ilustração: Céllus]
Leia
também: Incrível, porém verdadeiro: essa "loucura" bolsonarista que se
expressa de várias formas traduz um projeto de sociedade https://bit.ly/3V03uDb
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