Lula
deve rever ou revogar pelo menos 401 atos de Bolsonaro, aponta análise
Documento será entrega ao
presidente eleito; equipe do Política por Inteiro/Instituto Talanoa rastreou
mais de 140 mil atos com interface com a área ambiental
Phillippe Watanabe,
Folha de S. Paulo
O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deixou claro que
alguns de seus focos de governo serão a
Amazônia e a questão climática. Uma das possibilidades de início de
mandato poderia ser olhar e até revogar normas com impacto ambiental feitas
pela gestão Jair Bolsonaro (PL).
O petista e sua equipe deveriam, mais especificamente, debruçar-se sobre 401
atos do atual mandatário.
Esses atos que precisam, urgentemente, ser regulados ou até
mesmo revogados foram identificados por uma ampla análise feita pela equipe do
Política por Inteiro. O documento chamado "Reconstrução" deve ser
entregue, ainda nesta semana, para Lula.
O Política por Inteiro monitorou, durante o governo Bolsonaro,
todos os atos normativos que, de alguma forma, impactavam a área ambiental. A Folha é
parceira do Política por Inteiro na realização e disponibilização desse
acompanhamento por meio do Monitor da Política
Ambiental.
Foram identificados mais de 140 mil atos, até 31 de julho, que
tinham alguma interface com a área ambiental. Desse total, 2.189 foram
considerados relevantes para as políticas climáticas e socioambientais. Nesse
universo, 855 tiveram contribuição no processo de desconstrução ambiental, e
precisam ser revistos.
De modo mais urgente, o novo governo precisa olhar para 401 atos
infralegais (estão abaixo de leis e, em linhas gerais, dependem de
"canetadas") do governo Bolsonaro.
Entre os mais urgentes, 107 deveriam ser revogados imediatamente
para, segundo o documento, frear efeitos deletérios e demonstrar o compromisso
com a agenda climática/socioambiental. Outros 18 atos precisam de revogação,
mas somente após discussão jurídica e regulatória. Por fim, completando os 401,
outros 276 atos necessitam de análise para ajustes ou novas regulamentações.
Segundo Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa,
houve uma cuidadosa análise de todos os atos para evitar insegurança jurídica.
"Não é só um revogaço, como o Bolsonaro fez",
complementa Ana Paula Prates, diretora de políticas públicas da Talanoa.
"Temos que ter cuidado, não podem ficar vazios legislativos."
Por exemplo, para os atos a serem revogadas, a equipe observou a
possibilidade de repristinação, ou seja, a restauração da norma que ocupava
aquele lugar antes.
A análise temática feita pelo Política por Inteiro aponta que o
maior número de atos a serem retrabalhados tem como tema central a
biodiversidade (são 81). Já os atos institucionais lideram a lista dos temas
que necessitam de revogação (21).
Segundo o documento, as ações de desconstrução realizadas pelo
governo Bolsonaro "se tornaram políticas públicas em si".
Segundo Liuca Yonaha, vice-presidente da Talanoa, com o passar
do tempo, foi possível entender método de ação bolsonarista. O governo
Bolsonaro, inicialmente, por meio dos atos infralegais, fazia reformas
institucionais em órgãos responsáveis por determinadas áreas
—tais atos tiveram maior concentração, proporcionalmente, no primeiro ano da
atual administração.
"Em geral, as reformas eram para eliminar a sociedade
civil", diz Unterstell, que ressalta que, em certos casos, braços da
ciência e da academia eram deixados de fora dos órgãos.
Nos anos seguintes, predominaram atos de regulação e também de
resposta (ou seja, reatividade do governo a eventos externos, como uso da Força
Nacional de Segurança no combate ao desmatamento,
por exemplo).
Um dos exemplos mais claros disso foi a reformulação do
Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente). Com um decreto, em
maio de 2019, Bolsonaro e o então ministro Ricardo Salles (Meio
Ambiente), cortaram o número de integrantes do conselho de 96 para 23 e
elevaram o peso proporcional que a esfera federal ali tinha, diminuindo a
presença da sociedade.
Com a asfixia do controle social, abre-se o espaço para a
boiada, aponta Unterstell, relembrando uma já clássica fala de Salles. Durante
uma reunião ministerial em 2020 (que se tornou pública), Salles defendeu que o
governo aproveitasse a "distração" da imprensa com a pandemia de Covid para
aprovar reformas infralegais. "Ir passando a boiada e
mudando todo o regramento e simplificando normas", disse o ex-ministro.
Algumas "boiadas" são lembradas pelas representantes
da Talanoa e do Política por Inteiro. Uma delas foi um "simples"
despacho, em 6 de abril de 2020, que implementava um parecer da AGU (Advocacia-Geral da União) que fazia com que
o Código Florestal passasse
a ser aplicado na mata atlântica —um bioma que possui lei própria, mais
restritiva em alguns termos. Com a canetada, em linhas gerais, desmatadores
seriam anistiados, sem
necessidades de recuperação de áreas.
"Era um despacho. Era subterrâneo", afirma a
presidente da Talanoa.
Com as contestações de entidades e questionamentos judiciais, Salles revogou o despacho.
Por isso mesmo, apesar da importância desse ato, ele não consta entre os 401
citados na análise.
"Muitas boiadas não passaram por judicialização",
acrescenta Yonaha.
Outros tantos atos foram inócuos, diz Prates. "Muito mais
para dizer que está fazendo algo", afirma a diretora.
Leia também: A floresta sumiu,
ninguém sabe, ninguém viu https://bit.ly/3AByP7C
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