29 janeiro 2024

Raul Córdula opina

Manifesto da Resistência em Resistencia

Raul Córdula*

 

A grande maioria de nós, brasileiros, vivemos olhando para o Oceano Atlântico em busca da Europa que não alcançamos com os olhos, de costas para o Brasil e de costas para a América do Sul, nosso território fundamental. Parece que deixamos do outro lado do Atlântico alguma coisa que não conseguimos recuperar. Nossa identidade? Nossa história? Nossas guerras? Nossa honra?

Por que não conseguimos nos integrar às nossas matas em vez de queimá-las? Porque não conseguimos nos aliar com os povos indígenas, em vez de excluí-los, escravizá-los, dizimá-los? Que vergonha!

De Norte a Sul, de Porto Alegre a Manaus, passando por cidades de importante presença cultural como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Recife, Belém, a maioria dos artistas brasileiros de agora vivem e pensam numa aventura irreal, distante do povo, sonhando com Nova Iorque, Londres, Berlim, olhando o oceano e o céu, criando uma arte distante das raízes étnicas da América Latina, que não leva em conta o Pantanal, a Amazônia, os Andes, o Lago Titicaca, os Pampas, o Chaco, o Rio Paraná, os povos Cariris, Ianomanis, Kadiwéus, Tupis, Guaranis, Tapuias, Tairarius, Incas, Nascas, Maias, Astecas e tantos outros povos e línguas que formam este triste, porém grandioso Continente. Sim, a América do Sul é triste, mas por que é triste?

Ao aceitar o convite para integrar o júri de premiação desta Bienal Internacional de Escultura que acontece na cidade de Resistencia, no Charco argentino, importante produção da Fundacion Urunday conduzida de forma exemplar pelo escultor Fabriciano Gomes, dissemos que iríamos falar sobre arte e pobreza porque conhecemos de perto a pobreza do povo brasileiro. Mas depois de ver esta cidade luminosa, ágil, expressiva, que mantem em praça pública mais de trezentas esculturas de artistas modernos, mais da metade delas obras premiadas nas Bienais anteriores a esta, nos lembramos de onde viemos e pensamos melhor e modificamos nossa fala: nosso povo parece pobre, especialmente o povo de nossa Região, o Nordeste brasileiro, mas somos pobres apenas de dinheiro, pois ainda somos dominados por uma classe colonialista e perversa. Mas como pode ser pobre um povo que vive num dos continentes mais ricos do mundo em recursos naturais e dono de culturas mestiças de altíssima expressão que apontam para o futuro das etnias do mundo, como os povos irmãos brasileiros e argentinos?

Então, o que queremos propor como tema desta fala é exatamente esta questão: como um povo tão rico pode parecer tão pobre? Como algumas nações podem ser tão cruéis com seus filhos? Como e por que pode existir pobreza na América Latina? Porque ainda sofremos da ideia esquizofrênica de que o poder nos impôs, no decorrer de toda nossa história, uma ideia de isolamento e divisão entre os nossos povos.

Pensando melhor, o que desejamos anunciar é a riqueza, e não a pobreza da América Latina.

Não será a arte de raízes profundas, ligada povos autóctones, que estamos querendo dizer que é forte, renovadora e libertária? Sim, é isto que queremos dizer, é isto que finalmente queremos que esteja claro neste discurso-manifesto. Deveríamos também mostrar imagens do que consideramos arte de gente pobre, quando propusemos ao escultor Fabriciano Gomes, curador da Bienal, falar ao público daqui. Mas pra que mostrar mais imagens de arte nesta festa para o olhar que é esta Bienal Del Chaco da cidade das mil esculturas?

Os críticos de arte brasileiros Frederico Moraes, Aracy Amaral, Frederico Moraes e Roberto Pontual e a colombiana Marta Traba, entre outros especialistas em arte latino-americana, para citar os mais destacados, encontram e pesquisam a raiz construtiva de nossa arte no que denominam “geometria sensível” a partir de nossa base cultural indígena. Ao vermos a arte Guarani compreendemos isto, ao entrarmos em Cuzco, nas ruínas de Macho Pichu, Tiahuanaco, Teotihuacán, Copam, Chichen Itza, Pedra do Ingá, por exemplo, percebemos o quanto foi civilizatoriamente culta e forte a construção das cidades a partir da compreensão do número harmônico, das proporções áureas, do norteamento das ruas e casas, das relações naturais das cidades, com a chuva, o vento e o sol e o solo fértil. Na pintura de Torres Garcia vemos traços dessa ordem cósmica andina, nos artistas geométricos latino-americanos encontramos os traços dessa “geometria sensível”, assim como não seria o também e escultura africana, em especial o entalhe das máscaras ritualísticas, uma das bases fundamentais do cubismo de Picasso, que influenciou definitivamente a estética moderna?

A pintura corporal dos índios da América do Sul, com ênfase nos brasileiros, é também, além de uma expressão performática, um monumental registro de expressão geométrica. Os Kadiwéus, Caiapós, Ianomanis, Carajás, Botocudos, Bororos, Krenakarores, Tchacurramães e Ricbactivas, entre tantos, são donos de expressões corporais que se manifestam através da pintura e da arte plumária, de um nível estético e simbólico que transcende a muitos dos sentidos da arte européia. 

Quando nos referimos à arte construtiva não estamos nos limitamos à questão formal, mas ao sentido lato da palavra construção. Não queremos dizer apenas geometria, mesmo que sensível, mas queremos falar de uma harmonia significativa, algo que ordena o olhar para a construção de coisas, objetos, cidades, propósitos, sociedades. Queremos nos opor ao caos. Pensamos que na história da arte tivemos sempre correntes construtivas e correntes caóticas, em constante oposição, dentro da evolução das sociedades, e verificamos que os artistas acompanham estas correntes porque estão sempre ligados aos acontecimentos dos seus tempos. Mas há tempos de guerra e tempos de paz...

Não seria, portanto, a arte dos negros, com sua ancestralidade profunda, mística a mágica, também testemunha de uma “geometria sensível”? De resto, não seria a geometria a marca real do design do Universo?

Portanto, para falar de arte construtiva não posso evocar apenas o suprematismo de Malevitch, a vanguarda russa, o neoplasticismo de Mondrian, o cubismo de Picasso ou o concretismo brasileiro de Sacilotto, Lígia Clarck, Oiticica, Ligia Pape e Da Costa.  É preciso evocar a arte dos índios americanos e dos povos africanos, nas mãos dos quais está também o substrato da construção de cidades e de sociedades, a sensibilidade dos xamãs de todos os cantos da Terra, donos de um saber geomântico particular e poderoso e de um domínio sem par do conhecimento do solo e dos quadrantes da terra.

É também preciso evocar ainda artistas contemporâneos que trabalham com a terra, a natureza, a condição humana em relação ao planeta que nos abriga. Evocar artistas como Richard Long, Beuys e Kraschberg, por exemplo, mas também artistas da paisagem real, da natureza vegetal urbana, como Burle Max e Pradial Gutierrez.

Sobre o paisagista argentino Pradial Gutierrez gostaria de dizer que sinto por ele uma grande admiração pela maneira como faz a integração da arte com a paisagem, pelos exemplares projetos que envolvem as esculturas aplicadas na cidade de Resistência, e pelo que ele me informou sobre o Parque das Esculturas Sonoras da Patagônia. Trata-se de um trabalho coletivo do qual o mestre Pradial é o organizador dos seus espaços, mas também o elaborador dos seus conceitos. Sei, e isto me deixa ainda mais admirado, da atuação que a da Fundação Urunday tem nestes trabalhos, e de seus integrantes, que conseguem proporcionar à população da cidade este fato novo na cultura americana que é esta Bienal Del Chaco.

Costumo dizer que “o Brasil é lá dentro”, como se diz na minha terra, “nas brenhas”, “nos breus”. O Brasil não está apenas nas cidades litorâneas olhando o mar nostalgicamente. Depois que comecei a conhecer outros países americanos passei a dizer que a “América Latina também é lá dentro”: no Pantanal, nos Andes, no Chaco, nos Pampas, na Floresta Amazônica, além das lindas praias da minha terra. Por isto não posso falar de pobreza, mas de riquezas ocultas, de tesouros que existem como cavernas cheias de ouro, encravadas nas montanhas, levando em conta que o coração é a caverna do corpo assim como a caverna é o coração da montanha.

Dou-me conta de que num passe de mágica poderemos ligar todos estes pontos: as raízes de nossa arte, as histórias de nossos povos, os lances criativos de nossos artistas, a aberturas das cavernas de nossos corações. Este passe de mágica está em nossa vontade de quebrar as fronteiras de nossos países, para depois quebrá-la entre nós mesmos.

O que precisamos é nos integrar, intercambiar nossas criações, criar circuitos entre nós fora dos circuitos exploradores do marketing artístico americano do Norte ou europeu. Não nos basta circuitos como Buenos Aires/Paris/Nova Iorque, São Paulo/Kassel ou Caracas/Londres. Queremos Paraíba/Chaco, Bahia/Corrientes, Campina Grande/Montevideo, Recife/Santiago do Chile. Precisamos nos conhecer, nos tocar, nos desculpar por nossa falta de atenção. Nem sempre o tronco principal do nosso sistema circulatório vai bem, para tanto se podem implantar, pontes de safena, para criar uma circulação colateral e salvar as nossas vidas.

Há algum tempo, visitando Assunção eu vi no Museo del Barro obras de artistas que representavam não apenas o Paraguai, mas toda a América Latina, como o argentino Berni, o peruano Zilizlo, o colombiano Abularach, o venezuelano Cruz Díez, além do brasileiro Lívio Abramo, entre tantos outros do México, da Venezuela, do Chile e do Panamá. Pensei que no Brasil, com todo seu território e seus museus importantes do Rio, São Paulo, Salvador, Recife, Curitiba e Porto Alegre, pouco se vê e se conhece destes e de outros importantes artistas da América de fala espanhola. Pouco sabemos da arte da América do Sul. As poucas obras de Torres Garcia, Matta, ou Soto que lá se encontram estão mais em coleções particulares do que em nossos museus, as obras de artistas contemporâneos como as do grupo argentino CAIC, nos chegaram através da Bienal de São Paulo, uma mostra que, embora importante na sua estratégia, é eventual, não proporcionando o enriquecimento do acervo nacional. (Devo registrar, porém, que num pequeno museu na cidade de Campina Grande, onde nasci, há obras de dois ilustres artistas argentinos: Berni e Segui.) Foi, portanto, exatamente no Paraguai, país que o Brasil fez mais pobre através de uma absurda guerra que atendeu aos desejos imperialistas ingleses, foi justamente ali que aprendi a melhor lição sobre unidade latino-americana, naquele pequeno e belo Museo Del Barro dirigido na época pelo escritor e crítico de arte Tício Escobar e pelo artista gravador Oswaldo Salerno.

Há quase trinta anos assisti no México a um congresso mundial de artesanato promovido pela uma ONG Conselho Mundial de Artesanato e patrocinado pelo governo mexicano e produzido pelo Fundo Nacional para o Desenvolvimento do Artesanato, dirigido pelo intelectual Thonatihu Gutierrez. Na abertura o presidente Luiz Echeverría disse mais ou menos o seguinte: “O México tem três mil quilômetros de fronteira com os Estados Unidos, seria ridículo pensar que nossas heróicas, mas pequenas, forças armadas teriam capacidade de defender todo nosso país. O que defende o México é nossa cultura autêntica, a cultura de nosso povo”.

Somos nós, e seremos sempre nós, os artistas, os grandes cronistas da humanidade. Somos os que registram com a cabeça e interpretamos com o coração. Somos os Anjos anunciadores de novos tempos, de coisas práticas, e novas ideias. Mas somos também os Anjos Exterminadores, aqueles que anunciam as guerras, as fomes, as pestes e as mortes.

Os muralistas mexicanos contam ao mundo como foi a revolução de lá, o também muralista brasileiro Cândido Portinari mostrou no seu duplo mural da ONU a guerra e a paz, o brasileiro Abraham Palatinick, o argentino Júlio Le Parc e o venezuelano Jesus Soto transcenderam à pintura e a escultura com a arte cinética, o argentino Julio Plaza modificou o olhar dos jovens artistas brasileiros na década de 70.

Artistas latino-americanos estão hoje aqui, nesta cidade encantada de Resistência, dádiva do Rio Paraná, do Paranazão como dizemos no Brasil, rio de unidade e de integração, e em tantas outras cidades da latino américa, modificando a história, acrescentando algo mais ao cotidiano dos homens e agindo como testemunhos de seu tempo.

*Artista plástico, curador e crítico de arte

O mudo gira. E muda  https://bit.ly/3Ye45TD

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