17 julho 2024

Uma crônica de Cícero Belmar

Colecionador de pedras
Cícero Belmar*   

Há pessoas que colecionam objetos antigos e raros. Outras, joias valiosíssimas, para infartar os invejosos. As que têm dinheiro, enchem a sala de estar com obras de arte abstrata. Existe, ainda, quem prefira ostentar carrões únicos e clássicos. Milionários têm conjuntos de garrafas de uísques de safras especiais. As coleções dizem muito dos seus donos: modéstia à parte, eu junto pedras.

Antes que o assunto prossiga, não se destinam a apedrejar pessoas. Amo os seixos. Às vezes eu vou andando na rua e quando olho para o chão, foco justamente neles. Não faço charme, abaixo-me e pego. Pergunta número um: eles estão sempre em meu caminho ou sou eu quem os buscam? Número dois: eles surgiram da forma como os encontrei ou foram transmutados? Redondas, pequenas, as pedrinhas são perfeitas e parecem esculpidas pelas mãos invisíveis da água, do vento, do tempo. Ou ganharam esse jeito vindo do barro da Terra, há milênios?

Andar olhando para o chão não é próprio do meu estado de espírito. É querendo aumentar meu acervo. Certa vez, um amigo pensou que eu havia encontrado algo de valor, na Praça da Madalena, pois eu me abaixei, inesperadamente, peguei o objeto e o guardei no bolso da calça. Antes que eu recolhesse, meu amigo viu o seixo e, certamente desconfiado de minha sanidade, sorriu, irônico. Já me acostumei com a falta de entendimento: a imaginação de se comunicar com as pedras é confundida com o delírio. É fácil dizer que um colecionador de pedras é maluco, mas também é verdade que só enxergamos a piração dos outros.

Sou, assumidamente, um colecionador de pedras. Portanto, sei que elas têm linguagem difícil, mas dizem muito de si mesmas quando as olhamos, tocamos, sentimos. Cada uma tem sua história, tamanho, formato, cor, textura. Não existem duas pedras iguais, no mundo. São de personalidade discreta. No silêncio, comprovam que nossa passagem aqui na Terra é fugaz. Somente elas permanecerão.

Não sei se as coleciono ou se apenas junto pedras, pois não as ordeno, não as classifico. Em minha casa, guardo as que recolho na rua em pequenos jarros e caixas artesanais. Antes de armazená-las, lavo e as esterilizo. Eu sei que as pedrinhas são inúteis, mas também sei, o objeto de toda coleção, no final das contas, só serve para ser objeto. As minhas pedras não têm, sequer, fins esotéricos. Não busco cristais para energização.

Também não gosto das pedras talhadas, que são obras humanas. Essas, dessacralizam a natureza. Prefiro as brutas, em estado primordial. Ainda assim não cato as preciosas, os quartzos, as ágatas, esmeraldas e jades. As que coleciono são pedras de raio, caídas do céu, símbolos do próprio raio. Se as pedras caem do céu, elas trazem consigo a mensagem de que os deuses também jogam pedras, quando assumem sua parcela de loucura.

Não tenho lembrança de quando comecei a colecioná-las. Só me dei conta que eram uma coleção quando essa já existia. Ajuntar pedras faz parte da natureza humana ou sou eu que tenho um transtorno maníaco-compulsivo de acumular coisas?

Enquanto escrevo, percebo: as pedras, quando em nada, servem para vãs filosofias ou inspirar poemas e crônicas. O poema clássico afirma que havia uma pedra no meio do caminho. Outro, não menos clássico e ainda mais lírico, revela que quando uma ave conversa com uma pedra, é de poesia que falam. Não coleciono pedras para construir um castelo: coleciono, para ouvi-las. As palavras ditas têm a mesma raiz das pedras?

*Jornalista, escritor, membro da Academia Pernambucana de Letras

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