Entre mundos: a sabedoria do oprimido
Cláudio Carraly*
Nos
interstícios do poder e da cultura, forma-se um tipo particular de
conhecimento: o saber do oprimido. Trata-se de um acúmulo ampliado, plural,
muitas vezes invisível aos olhos das epistemologias dominantes, mas
profundamente potente. O sujeito marginalizado, especialmente aquele oriundo
das periferias do mundo, do sertão ao sul global, da favela às ex-colônias,
carrega em si não apenas a gramática de sua própria existência, mas também a
linguagem do poder que o oprime, ele é bilíngue em estruturas de dominação.
Tomemos
como ponto de partida nosso país, o jovem do nordeste, migrante real ou
simbólico, desde cedo precisa se alfabetizar não apenas nas letras da escola,
mas nos códigos de prestígio do centro dominante. Aprende a reconhecer
sotaques, gírias, referências midiáticas, posturas esperadas e até as
caricaturas e estereótipos que fazem dele e da sua gente. Decifra as narrativas
do Sudeste, as músicas das rádios nacionais, as estéticas dos grandes jornais,
não apenas compreende, mas muitas vezes reproduz, com domínio técnico e
profundo senso analítico. Vive em trânsito.
Enquanto
isso, o jovem das regiões centrais, herdeiro inconsciente do monopólio
narrativo, permanece alheio à riqueza dos dizeres de quem está longe demais das
capitais, desconhece completamente as tradições, signos e saberes que são
profundamente ricos. Esse desnível não é casual, trazendo para discussão o
aspecto transnacional, ele expressa o que Boaventura de Sousa Santos chamou de
epistemologias do sul: formas de conhecimento historicamente marginalizadas,
silenciadas, apagadas por um sistema-mundo que universalizou a experiência do
Norte global como a norma, e a do Sul como exótica, essa vista como subalterna
ou folclórica. A força do saber periférico está em seu caráter híbrido e
adaptativo: O oprimido precisa compreender mais que o opressor para sobreviver,
resistir, resinificar e crescer.
É uma
repetição histórica, um ouroboros, durante os séculos de dominação europeia, os
africanos sequestrados e escravizados precisavam aprender as línguas dos
colonizadores, seus gestos, seus códigos religiosos, sua organização social,
sob pena de punição, exclusão ou morte. Já os senhores brancos, donos das
senzalas e das igrejas, em geral jamais aprenderam os idiomas bantos ou
iorubás, os significados dos orixás, os saberes medicinais ancestrais. Em
Angola, Congo, e mesmo no Brasil, o africano conheceu profundamente a Europa,
mas a Europa jamais compreendeu a África.
Essa
assimetria ainda é atual, um intelectual indiano lê Michel Foucault, Judith
Butler, Marx e Kant. Mas quantos pensadores parisienses leram B. R. Ambedkar,
Gayatri Spivak ou Vivek Chibber? O estudante latino-americano reconhece obras
de Jürgen Habermas e John Rawls. Mas quantos alemães já ouviram falar de Aníbal
Quijano, Silvia Rivera Cusicanqui ou Paulo Freire? A divisão internacional do
trabalho intelectual permanece colonial: o Sul conhece o Norte, mas o Norte
ainda ignora o Sul, inclusive onde este é indubitavelmente mais qualificado e
teoricamente superior.
É nesse
cenário que emerge o conhecimento estratégico do marginal, não é apenas
resistência; pode ser uma leitura refinada do mundo. Como disse bell hooks, a
marginalidade pode ser um local de radical abertura, um ponto de vista a partir
do qual se enxerga o todo, incluindo o centro, enquanto o centro vê apenas o
reflexo de si mesmo, o periférico é cosmopolita à força, ele vive entre mundos.
Um jovem do subúrbio de Dakar conhece com desenvoltura a culinária, programas
de TV e música francesa, e ainda é capaz de recitar inúmeros trechos do
Alcorão. Um morador do sertão do nordeste conhece a letra inteira de um funk
carioca, mas também os usos do extrato de umbuzeiro e como usar a palma na seca
para alimentar os animais. Um indígena brasileiro decodifica as instituições
ocidentais para conseguir demarcar sua terra, ao mesmo tempo em que preserva a
cosmologia ancestral de seu povo. São todos transfugas da fronteira, por
imposição perversa da latitude e longitude do local do seu nascimento.
Esses
sujeitos acumulam, portanto, um capital simbólico ampliado, eles não apenas
detêm seus saberes originários, mas também dominam com lucidez crítica os
códigos hegemônicos, são intérpretes multiculturais. No entanto, sua erudição
popular, seu conhecimento prático, sua leitura dupla do mundo, não são
valorizados pelas instituições e academias. Isso revela o quanto a modernidade
continua presa à estrutura colonial que a fundou: só reconhece como universal
aquilo que nasce no centro, e normalmente só repara a borda quando o próprio
centro observa algum valor por lá.
A
escritora portuguesa de pais africanos, Grada Kilomba, em seu livro Memórias
da Plantação, mostra como o saber do colonizado é constantemente
deslegitimado e expulso do território do pensamento. Quando o negro, o
indígena, o pobre ou o migrante fala, muitas vezes não é escutado, ou é ouvido
como “experiência” e não como “teoria”. O saber das margens é tolerado como
curiosidade, mas raramente aceito como epistemologia válida.
Esse
fenômeno é reproduzido também na mídia, nas artes, moda, cinema, na política
institucional, em tudo. Quantas vezes as gírias das periferias viram moda nos
centros urbanos sem o devido crédito ou contexto? Quantas vezes expressões de
resistência estética são apropriadas sem reverência às suas origens? A
periferia fornece o ritmo, o sabor, a cor, a magia, o conhecimento, mas não o
poder de nomear ou conduzir.
Contudo,
há fissuras nessa hegemonia, a circulação digital e midiática tem provocado em
parte uma reconfiguração desse jogo. A democratização da internet tem exposto
jovens periféricos a múltiplos universos culturais e, ao mesmo tempo, projetado
suas linguagens para além do gueto e diminuindo as fronteiras. Coletivos de
comunicação popular, lideranças indígenas e quilombolas, escritores das
periferias, rappers e poetas, grafiteiros, estão transformando sua vivência em narrativa
política, estética e pedagógica. Nunca tantos marginalizados souberam tanto
sobre tantas realidades de tantos outros marginais. Porém, o centro pouco se
move, assim, o peso da desigualdade epistemológica persiste.
Para nós
do Sul Global, é exigido um repertório duplo, por vezes triplo: o sujeito
periférico precisa dominar seu contexto local, interpretar os códigos do centro
e se orientar num mundo globalizado em constante mutação, é um malabarismo
existencial. Mas também vira uma capacidade potencial, essa plasticidade de
leitura, essa fluência entre mundos, é um dom de quem se acostumou a caminhar
sobre terrenos instáveis, transforma essa pessoa em alguém que pode analisar o
micro e ainda compreender perfeitamente o macro.
Nesse
sentido, a figura do oprimido é tudo menos passiva, sabe quando traduzir e
quando deixar que o centro se perca na própria ignorância, sabe entrar em
espaços onde sua presença é questionada e, mesmo assim, ocupar com dignidade e
crítica. A capacidade de viver entre códigos, de habitar simultaneamente o
mundo do colonizador e o da resistência, é um atributo de profunda complexidade
intelectual. Não devemos romantizar a situação, mas compreender a força que
advém da escassez.
Refletir
sobre esse fenômeno é também repensar as bases de um novo pacto civilizatório,
o saber do marginalizado precisa deixar de ser apenas um instrumento de
sobrevivência para se tornar um ponto de partida, aquele que conhece a si mesmo
e ao outro está mais apto a propor sínteses, mediações, recomeços. O mundo que
queremos talvez esteja mais próximo da escuta das periferias do mundo do que da
repetição estéril do centro dominante.
Como
disse Frantz Fanon, "o colonizado é um homem enredado em dois
mundos". Mas esse entrelaçamento, longe de ser um fardo, pode ser uma
chave para uma nova concepção de humanidade: múltipla, fluente, inclusiva,
atenta às bordas. Uma humanidade em que saber mais não seja privilégio, mas
reconhecimento, quem sabe um mundo sem centros únicos, em que cada ponto do que
hoje vemos como margem seja o nascedouro de um novo centro que entre em
confluências com outros tantos centros mais, até que não haja mais necessidade
nenhuma de centralizar.
Essa
transformação exige uma ética da escuta, que os centros se abram a silêncios
longamente impostos, que o conhecimento deixe de ser um privilégio geográfico e
passe a ser uma partilha comprometida. Que o currículo, universidades,
bibliotecas, museus, parlamentos e as redações acolham vozes até então
secundarizadas, não como ato de caridade, mas como reparação histórica e
reinvenção do comum, pela beleza da busca de conhecimento mais pleno, porque,
como vimos, o saber do oprimido não é menor, ao contrário, é muito mais vasto,
pois abarca um conhecimento incontabilizável, o do seu mundo e o do dele.
Cláudio
Carraly - Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco.
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