Como os rentistas sabotam o desenvolvimento nacional
Uma análise das estratégias discursivas que mantêm o Brasil refém dos interesses financeiros
Daniel Negreiros Conceição/Le Monde Diplomatique
O mito da escassez como arma política
O Brasil vive sob o domínio de uma narrativa que se tornou senso comum: o Estado está sempre à beira da falência, os gastos públicos são intrinsecamente perigosos, e qualquer política que beneficie a população através do aumento de gastos governamentais representa um risco fiscal inaceitável. Esta narrativa não é acidental – é uma construção deliberada que serve aos interesses de quem lucra com a manutenção da escassez artificial em economias monetárias e capitalistas, os rentistas.
Para compreender essa dinâmica, é fundamental reconhecer que vivemos em uma economia onde diferentes grupos têm interesses estruturalmente antagônicos. De um lado, encontram-se aqueles que dependem do desenvolvimento real da economia – trabalhadores, empresários produtivos, setores voltados para o mercado interno. Do outro, aqueles que extraem renda através de operações financeiras, beneficiando-se da volatilidade, da escassez de crédito produtivo e das altas taxas de juros.
A inversão da lógica econômica
O discurso dominante inverteu completamente a relação entre Estado e economia. Transformou o ente capaz de criar moeda em refém daqueles que dela dependem. Esta inversão não é produto de ignorância – é resultado de uma sofisticada operação ideológica que obscurece deliberadamente como funciona um sistema monetário soberano.
Quando economistas do mercado financeiro afirmam que “o Estado precisa se ajustar como uma família”, estão propagando uma analogia que sabe ser falsa. Uma família é usuária de moeda; o Estado soberano é seu emissor. Esta diferença não é técnica – é fundamental para compreender o espaço fiscal real de qualquer nação.
A insistência nesta analogia revela sua funcionalidade política: manter o debate econômico dentro de parâmetros que legitimam a primazia dos interesses rentistas sobre as necessidades nacionais de desenvolvimento.
O fracasso histórico da conciliação
A experiência do governo Dilma oferece lições inequívocas sobre os limites da estratégia conciliatória. A tentativa de conquistar credibilidade através do ajuste fiscal radical não apenas falhou em seu objetivo político – aprofundou drasticamente a crise econômica e criou as condições que viabilizaram o golpe de 2016.
Este episódio demonstra que o setor rentista não busca políticas “tecnicamente corretas” – busca políticas que maximizem seus rendimentos, independentemente de seus custos sociais. A manutenção de juros elevados, a austeridade fiscal procíclica e a subvalorização cambial inflacionária não são erros de gestão – são características funcionais de um modelo econômico que subordina o desenvolvimento nacional aos imperativos da acumulação financeira.
Desmistificando o “Risco Fiscal”
O terror fiscal baseia-se em uma compreensão deliberadamente equivocada sobre as capacidades de um Estado monetariamente soberano. Países que emitem sua própria moeda enfrentam limites reais – inflação, constrangimentos de recursos produtivos, pressões cambiais – mas não enfrentam limites financeiros no sentido convencional.
Reconhecer esta realidade não significa defender gastos ilimitados ou irresponsáveis. Significa compreender que as restrições relevantes são aquelas relacionadas à capacidade produtiva da economia, não aos saldos nominais de contas públicas. Um Estado que possui recursos ociosos, desemprego em massa e necessidades sociais urgentes enfrenta, na verdade, um imperativo ético de mobilizar estes recursos – não uma restrição fiscal que o impeça de fazê-lo.
Estratégias para quebrar o ciclo de sabotagem
1. Desmascarar as narrativas falsas
É fundamental que o governo desenvolva uma comunicação sistemática que eduque a população sobre o funcionamento real da economia. Isto inclui explicar as diferenças entre Estados emissores e usuários de moeda, demonstrar como funciona o sistema bancário, e expor os interesses específicos por trás das demandas por austeridade.
2. Implementar políticas antifragilidade
Em vez de buscar aprovação dos mercados financeiros, o governo deve construir sua legitimidade através de resultados concretos para a população. Isto inclui políticas de pleno emprego, investimentos massivos em infraestrutura, fortalecimento dos serviços públicos e redução das desigualdades regionais.
3. Reformular a gestão da política monetária
A obsessão com metas de inflação descontextualizadas serve principalmente para manter elevados os rendimentos financeiros. Uma política monetária verdadeiramente soberana deveria considerar o pleno emprego como objetivo primário, utilizando a taxa de juros como instrumento de desenvolvimento, não como mecanismo de transferência de renda para rentistas.
Somente o Banco Central tem o poder ilimitado de criar reais na economia brasileira. Se utilizado de forma competente, este poder pode inviabilizar quase completamente a viabilidade das estratégias sabotadoras utilizadas hoje pelo setor financeiro para manter refém o governo brasileiro. A oferta infinitamente elástica de swaps cambiais (aplicações remuneradas pela desvalorização cambial mais algum prêmio) tornariam inviavelmente custosa a especulação cambial. Já a estabilidade da taxa referencial de juros de curto prazo (a Selic) tornaria inviavelmente custosa a especulação contra títulos públicos.
4.Fortalecer as instituições democráticas
O combate ao poder rentista requer o fortalecimento das instituições que representam os interesses populares. Isto inclui tanto o parlamento quanto os mecanismos de participação social, criando contrapesos efetivos ao poder econômico concentrado.
A urgência do momento histórico
O Brasil enfrenta uma janela de oportunidade que pode não se repetir. O fracasso das políticas neoliberais tornou-se evidente mesmo para setores que antes as apoiavam. A população demonstra crescente ceticismo em relação às promessas do mercado financeiro. O cenário internacional oferece espaços para políticas mais soberanas.
Desperdiçar esta oportunidade em nome de uma conciliação que sabemos ser impossível representa mais do que um erro político – representa uma traição histórica às possibilidades de transformação que o momento oferece.
Por um projeto nacional soberano
O desenvolvimentismo do século XXI não pode repetir as ingenuidades do passado. Deve reconhecer que o setor rentista não é um parceiro relutante do desenvolvimento nacional – é seu adversário estrutural. Políticas que beneficiam genuinamente a população brasileira ameaçam diretamente os mecanismos de extração de renda que sustentam este setor.
A escolha é clara: ou o Brasil constrói uma economia voltada para as necessidades de seu povo, ou continua sendo uma plataforma de valorização para o capital financeiro internacional. Não há meio-termo técnico que resolva esta contradição fundamental.
O momento exige coragem para enfrentar os interesses que se beneficiam da subserviência nacional. Exige também a inteligência para construir alternativas viáveis que demonstrem, na prática, que outro modelo econômico é possível.
A história julgará se soubemos aproveitar esta oportunidade ou se permitimos que mais uma geração fosse sacrificada no altar da ortodoxia rentista.
Daniel Negreiros Conceição é professor de economia política, macroeconomia e economia do setor público na UFRJ e autor do livro Teoria Monetária Moderna: a chave para uma economia a serviço das pessoas.
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