Finados antigamente
Luciano Siqueira
Para o site da revista Algomais
Se era em Natal, minha terra, devia ser em todo o País. Dia de Finados era uma coisa diferente de todos os dias especiais que impactavam os meninos da família. O fim de ano era só alegria, assim o carnaval e as festas juninas. O dia da padroeira, idem.
Mas o 2 de novembro tinha um quê de solene e o mesmo tempo triste. Fúnebre. As emissoras de rádio tocavam apenas dobrados. As pessoas transitavam nas ruas silenciosas a caminho de cemitério ou da igreja. Em casa, reminiscências em torno dos familiares já falecidos. Comércio fechado, cinemas e parques de diversão também. Praias semidesertas.
Lá em casa quase nada se fazia. Sequer nossas brincadeiras de costume. Tanto que um dia, já na década de sessenta, fomos bater bola no quintal, contrariando a vontade explícita de minha mãe. Não se podia fazer isso em dia tão reservado à reflexão sobre o sentido da vida e a inevitabilidade da morte.
Pois bem. Nem me lembro por que carga d’água, já ao final da pelada surgiu um desentendimento entre dois irmãos, que foram às vias dos fatos, com direito a pequenas escoriações e leves traços de sangue. Dona Oneide quase se desespera. Os filhos e amigos mais próximos, certamente também contrariando suas mães, haviam cometido o sacrilégio de jogar futebol justo no dia reservado aos mortos e por castigo divino caíram na tentação de resolver no braço o que a conversa não dera conta.
Hoje é tudo diferente. Aliás, a diferença já vem das duas últimas décadas do século passado, se não me engano. E em pleno século 21 ninguém pode imaginar um Dia de Finados conspícuo e ortodoxo como antigamente.
Embora a TV mostre o de sempre, multidões que acorrem aos cemitérios enfrentando problemas vários, das dificuldades de acesso, em alguns casos, em razão do caos da mobilidade urbana (nem se falava nisso àquela época), até as falhas na manutenção dos campos santos, culpa da gestão municipal. São reportagens tão idênticas que se simplesmente se repetissem imagens de anos anteriores o telespectador nem perceberia a diferença.
Fora isso, a programação é normal, inclusive as indefectíveis novelas. As rádios tocam tudo, sem discriminação. Talvez as emissoras pertencentes a correntes religiosas façam alguma diferença, nem tenho tempo de verificar.
Enfim, o dia 2 só não tem festa explícita, mas a maioria o dedica plenamente ao lazer. Sem nenhum drama de consciência, nem a vigilância dos mais velhos. Agora mesmo estou ouvindo programa musical variado numa emissora que toca música o tempo todo. Do sambão de Alcione e Beth Carvalho a Chico Buarque e Tom Jobim, incluindo Rita Lee e outros roqueiros nacionais. Blasfêmia? Nada disso, apenas um tempo novo, novos costumes. A superação gradual de uma tradição que vem desde o século 2 da Era Cristã, por iniciativa da Igreja Católica. É que o mundo dá suas voltas e a gente vai na onda, mesmo sem deixar de reverenciar os que se foram e nos deixaram saudade.
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