STF é corresponsável
pelo destino frustrado da Constituição. Ou pelo abismo à vista
O Brasil é talvez o país que mais tem leis. E
o que menos cumpre leis
Janio de Freitas, no Folha de S. Paulo
Ou
aprendemos a ser obedientes à Constituição, ou condenamos o Brasil em
definitivo a subnação.
A Constituinte de 1988 foi efetivada com a última
composição do Congresso em que o despreparo e a ordinarice eram minoria. Apesar
disso, não é uma obra perfeita, mas contém todo o essencial para orientar a
construção de um país respeitável. Um Brasil sem aberrações sociais, como são
as desigualdades, e com pleno Estado de Direito Democrático. No usufruto de sua
riqueza e em crescente engrandecimento cultural.
O Brasil
tem caminhado na direção inversa. Já chegou ao nível em que a recuperação
encontraria dificuldades de difícil superação. A Constituição não falhou. Foi
desprezada, não sendo menos verdadeiro dizer-se que está sendo traída para a
continuidade de vantagens seletivas.
Há
responsáveis pela desintegração da oportunidade trazida pela Constituição e
pelas relações internacionais sem adversidades. A classe que vive em uma redoma
de riqueza, bem-estar e poder, condicionadora dos poderes institucionais e da
maior parte da opinião pública, foi, assim capacitada, o fator restritivo das
correções e inovações. A omissão e medidas da conveniência dominante contrastam
com a Constituição, para fazer do Brasil o país do desregramento.
Desregrado
não é o carente de regras ou de conhecê-las. É o que as tem, conhece e não
cumpre. O Brasil é talvez o país que mais tem leis. E o que menos cumpre leis.
Grande parcela da legislação foi emitida, aprovada por deputados e senadores e
sancionada por meros casuísmos, para atender a casos particulares ou
circunstanciais. Não pediram e não receberam obediência, o que se tornou
costume.
A Constituição
não foi poupada da sanha. Em seus 30 anos quase completos, foi submetida a mais
de cem intervenções. Inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, no papel de
legislador. Como no caso do habeas corpus ainda sob
votação quando escrevo. Em 28 anos, não houve quem, nem mesmo no Judiciário,
que propusesse mais uma reforma centenária da Constituição, para retirar a
garantia de que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória", logo, até que esgotados todos
recursos contra a condenação. Em dezembro de 2016, bem conhecidas as
probabilidades de prisões decorrentes da Lava Jato, o Supremo descobriu por um
voto (6 a 5) que a Constituição estava "errada".
Dois
argumentos se destacaram nos arrazoados em favor da mudança. Um, as prescrições
por excesso de prazo dos processos, resultando em impunidades. Ocorrência comum
na Justiça brasileira, com destaque para o Supremo. Em todos os casos,
atribuída às defesas a causa das demoras. Mas os intervalos inúteis, causa real
da quase totalidade das demoras, não são feitos pelas defesas, que têm prazos
rigorosos. São feitos nos tribunais. Pelos ministros. Impunes, eles também.
Há
processos dormindo no Supremo há 15 anos, senão 20 ou mais. Assim continua: o
ministro Luiz Fux, por exemplo, está há quatro anos com o processo do auxílio-moradia hoje em moda. Nunca se soube, sequer,
de um presidente do Supremo que cobrasse a devolução, no prazo de duas sessões,
dos processos sob pedido de vista, às vezes até sugestivos de cegueira do
respectivo ministro.
O outro
argumento, este criado pelo ministro Luís Roberto Barroso, diz que a prisão
antecipada não se anula com a exigência do "trânsito em julgado",
porque o item LXI do mesmo artigo constitucional diz que "ninguém será
preso senão por ordem escrita de autoridade judiciária competente", o que
significaria a autorização necessária para a prisão em segunda instância. Ociosa,
portanto, toda a discussão.
O ministro
aprecia um sofisma, mas é claro que não ignora o que é condição, aquilo mesmo
que o item do "trânsito em julgado" estabelece para o eventual ato da
"autoridade judiciária competente". Sem a exigência de um, o outro
nada pode.
A ministra
Cármen Lúcia abriu o julgamento do habeas lembrando que o Supremo é o
"responsável pela guarda da Constituição". É também, pode-se lembrar,
corresponsável pelo desregramento no país e pelo destino frustrado da
Constituição. Ou pelo abismo à vista.
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