O Nordeste existe?
Ronaldo
Correia de Brito*
Rubens Figueiredo e eu
participávamos de uma mesa sobre literatura brasileira, quando me fizeram a
tradicional pergunta, essa que se tornou curricular para mim: você se considera
um escritor regionalista? Rubens pediu o microfone e afirmou ser um regionalista,
jamais um universalista. Ele traduz e estuda literatura russa, sabe que apesar
da divisão entre eslavófilos e europeizados, os escritores se preocupavam em
criar para leitores da Rússia, pensando neles. Refletiam sobre o povo russo e
chegavam às grandes questões do homem, sem veleidades universalistas.
No Brasil, desde o começo do
século passado, havia um desejo de escrever semelhante a europeus e
norte-americanos modernos. Gilberto Freyre e vários intelectuais criaram um
movimento em oposição à Semana de Arte Moderna de 22, o Movimento
Regionalista-modernista, de 1926. Da valorização da cultura regional, surgiu o
romance de 30, com Graciliano Ramos, José Lins do Rego, José Américo de
Almeida, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e Erico Verissimo, para citar apenas
alguns nomes.
Assumidamente avesso aos
resultados da Semana de 22, Graciliano Ramos achava que os modernistas
brasileiros confundiam o ambiente literário do país com a Academia e traçavam
linhas divisórias, mas arbitrárias, entre o bom e o mau, querendo destruir tudo
que ficara para trás, condenando por “ignorância ou safadeza” muita coisa que
merecia ser salva. Com desconcertante franqueza respondeu quando lhe
perguntaram se era modernista: “Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu
movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano,
vendendo chita no balcão”. Se o regionalismo idealizado por Gilberto Freyre em
reação aos modernistas ajudou a polemizar a cena literária brasileira, também
acentuou uma linha divisória que já existia desde as capitanias hereditárias,
agravou a tendência em separar a produção intelectual do Nordeste e Sudeste.
Desculpem essa digressão
didática, mas necessito dela para responder a pergunta que me fazem. Considerem
que existiram cânones do regionalismo e do romance de 30. Passados noventa
anos, não se escreve mais com essa linguagem, a menos que seja um caso de
anacronismo. Mas se vocês consideram ter nascido e morar numa região, e
vivenciar a cultura local como regionalismo, eu me assumo regionalista. Na
Feira de Frankfurt, em 2013, onde eu era o único escritor residente no Nordeste
na comitiva do Brasil, fiquei feliz em estar ao lado de Guimarães Rosa num belo stand,
apresentados como escritores regionalistas.
A questão é mais séria do que
imaginam. O empenho de intelectuais e acadêmicos de diversas áreas –
sociólogos, antropólogos, críticos literários – em folclorizar e subestimar o
valor da produção cultural das regiões brasileiras, fora do eixo Sudeste, que
detém o poder econômico e da informação, é bastante desleal e antigo. Cabe na
análise das causas uma leitura política, por serem indissociáveis. Do Rio de Janeiro vieram os
comandos que reprimiram a Revolução de 1817 e a Confederação do Equador,
movimentos republicanos emancipatórios do Nordeste. Também do Sudeste chegaram
as forças militares que esmagaram Canudos e veio a orientação para bombardear o
Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, comunidades que sonhavam com um novo modelo
de sociedade, sem nada dos ideais comunistas que Rui Facó imaginou.
Tratava-se de populações
caboclas, descendentes de índios e escravos retomando o modelo dos quilombos e
tribos. Somos mestiços de negros, índios, portugueses, judeus, sírios,
libaneses, árabes, ciganos, holandeses e de muitos outros povos, falamos o mesmo
idioma brasileiro, mas temos padrões culturais diferentes. Gilberto Freyre
defendia nossa miscigenação, contrariando o que a ciência equivocada do século
XIX e início do século XX condenava como degenerescência racial, o que levou
muitas nações, inclusive o Brasil, ao delírio da eugenia.
Cometeram erros históricos ao
nos interpretarem. Sendo do Rio de Janeiro, não havendo nascido no sertão de
que trata em sua obra, Euclides da Cunha contribuiu para codificar o que lhe
pareceu sertão, guiando a academia, leitores e gerações futuras a buscarem o
modelo estabelecido por ele de semiárido habitado por bárbaros, sub-raça
ameaçada de desaparecer.
Os Sertões, livro preconceituoso,
supremacista, racista, cientificamente ultrapassado tornou-se a cartilha em que
universidades e gerações de leitores formaram um imaginário de sertão e do
homem sertanejo. O processo é semelhante ao dos orientalistas em relação ao
Oriente. Da mesma maneira que o Oriente é corrigido e penalizado por estar fora
dos limites da Europa e América do Norte, o sertão do Nordeste brasileiro
sofreu por se encontrar fora dos limites da sociedade do Sudeste. Foi
igualmente “sertanizado” por acadêmicos e cientistas.
Edward Said refere os dois
aspectos do Oriente que o distinguem do Ocidente, na geografia imaginativa
europeia: a Europa é poderosa e articulada; a Ásia é derrotada e distante. A
China ainda não havia se tornado o que é hoje, é bom lembrar. Vale o mesmo para
o Nordeste e o Sudeste? Perdemos o poder econômico e cultural, deixamos de
estabelecer regras, desde a chegada de D. João VI e sua corte ao Rio de
Janeiro. Já no século XVIII tentava-se controlar as migrações de sertanejos do
“norte” para os sertões “paulistas”. Paulista não se referia apenas aos
nascidos no Estado de São Paulo, mas a uma legião de bandeirantes, criadores de
gado, grileiros de terra e mineradores, que ocupavam São Paulo, Goiás, Paraná e
até territórios do Piauí. Portanto, esse “sudeste” já definia leis, espaços,
conceitos, padrões e até o que nós, da banda de cá, podíamos ser e sonhar.
Não cabem aqui todas as
questões suscitadas por essa pergunta. Nem sequer desenvolvi o tema do
preconceito e do racismo, visceralmente ligado à nossa formação. Semelhante a
Kafka eu também poderia ter assumido o não lugar, o não pertencimento, como
muitos nordestinos fazem por sobrevivência. Mas isso seria impossível. Em tudo
o que escrevo reafirmo minha geografia de nascimento, a origem, onde vivi no
passado e onde escolhi morar no presente.
*Médico, dramaturgo, escritor
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