02 junho 2023

Geopolítica do conflito Rússia x Ucrânia

Esse artigo a rigor não acrescenta nenhum dado novo à análise do conflito Rússia x Ucrânia, mas é oportuno porque sintetiza, de modo simples e direto, suas implicações geopolíticas.

Guerra da Ucrânia: um novo mundo multipolar está surgindo

O embate entre Otan e a Rússia trará como efeito uma reordenação permanente no jogo das correlações de forças geopolíticas no século XXI
Charles Pennaforte/Le Monde Diplomatique

As demandas russas sobre a sua segurança geopolítica nunca foram levadas em consideração tanto por Washington quanto por Bruxelas ao longo das últimas três décadas. Pelo contrário. Europeus e estadunidenses fizeram o possível para expandir a União Europeia e a Otan para o Leste Europeu ao mesmo tempo em que Moscou sempre demonstrava o seu descontentamento com tal avanço.
Na verdade, a Rússia sempre representou um perigo geopolítico para Washington por sua capacidade militar e tecnológica herdadas da URSS. A Rússia “ideal” para o Ocidente só ocorreu sob a liderança de Boris Yeltsin (1991-1999) quando o país fez a transição para o capitalismo de uma maneira totalmente abrupta passando por uma de suas piores crises econômicas e sociais da história. Uma R& uacute;ssia dependente economicamente, fraca militarmente e com um governo pró-Ocidente sempre foi o cenário desejável para os EUA. Contudo, a situação mudou drasticamente com a ascensão ao poder de Vladmir Putin nos anos 2000.
A recuperação econômica e geopolítica ao longo do tempo, recolocou o país no jogo internacional com a recuperação dos interesses estratégicos da Rússia enquanto herdeira geopolítica da URSS. O “fim” da tolerância russa à expansão Ocidental em direção de suas fronteiras teve início com a retomada da Crimeia em 2014 sob olhares atônitos de europeus e estadunidenses.
A movimentação de Kiev na direção da União Europeia e da Otan acelerou a determinação de Moscou em encerrar definitivamente pela via bélica, o capítulo ainda aberto após fim da URSS: a sua segurança geopolítica, bem como a utilização da Ucrânia por Washington como uma futura base militar da Otan contra o país. A segunda invasão à Ucrânia em fe vereiro de 2022 marcou em nossa concepção essa segunda fase.
A manutenção da Otan criada na Guerra Fria para enfrentar a ameaça que não existe mais no cenário pós-1989 não faz sentido. Contudo, há sentido quando pensamos em bilh&oti lde;es de dólares em vendas de material bélico produzidos em grande parte pelos EUA para os seus parceiros europeus, na corrupção e nas comissões milionárias envolvidas para os intermediários. É fundamental a manutenção da Europa sob domínio político e militar de Washington.  Pelo lado econômico, a expansão da União Europeia sobre o Leste Europeu seguiu a mesma lógica: o aumento de membros com o objetivo de incrementar uma problemática união econômica (o Brexit foi um exemplo em 2020) que vem sofrendo questionamentos internos e de quebra diminuir a influência russa sobre a área.

Os erros de avaliação e percepção de Moscou e Washington

Ao contrário da campanha da Crimeia em 2014, quando a vitória russa ocorreu de maneira relativamente tranquila e rápida, a invasão de 2022 pode ser considerada inicialmente, no mínimo, desastrada. Chamou a atenção os inúmeros erros de avaliação de Moscou nas consequências de curto e longo prazo em sua estratégia de subjugação da Ucrânia. As imagens que circularam o mundo com quilômetros e quilômetros de caminhões e equipamentos bélicos ao longo de estradas, o avanço inicial sob Kiev e inúmeras outras áreas do país, para meses depois ocorrer a retirada mostraram que os cálculos militares não foram bem-feitos e muito menos as suas consequências bem avaliadas. Isso a despeito da incontestável supremacia russa no campo militar.
Na área diplomática Ocidental a situação fugiu totalmente ao controle de Moscou quando os EUA tiveram a percepção que poderiam aproveitar o momento para enfraquecer a liderança de Vladmir Putin por um lado, promover um “upgrade” na criticada existência da Otan e facilitar um possível “regime change” por meio do estrangulamento econômico. Mas Washington e seus aliados também cometeram alguns erros de avaliação. Não contaram com a posição chinesa de “neutralidade” e muito menos com a “neutralidade” de inúmeros países como a Índia e Brasil, além de vários países do continente africano, por exemplo. E o pior: proporcionaram ainda o início da aceleração da desdolarização da economia mundial com as sanções econômicas contra os russos, aglutinando os objetivos de vários países que já questionavam a supremacia do dólar como moeda de transação comercial dominante. Supremacia que certament e poderá levar décadas, mas que já está em andamento.
Voltamos a afirmar que o atual conflito russo-ucraniano nunca poderia ganhar as proporções internacionais que foram geradas a partir da atuação do Eixo Washington-Bruxelas, tendo em vista os impactos diretos sobre a Europa, a mais prejudicada ao seguir a linha “kamikaze” dos EUA que ganham muito mais economicamente com as sanções russas, enquanto os europeus sofrem de algum modo como Moscou os seus efeitos.
No campo militar, a Ucrânia só está conseguindo suportar o peso da guerra em função do apoio total dado pelo Otan. Mesmo com relatos da proeza militar dos soldados ucranianos disseminados pela mídia ocidental. Sem esse apoio a guerra já teria acabado provavelmente. Por outro lado, apesar dos erros militares iniciais, Moscou parece ter preferido optar pelo desgaste do seu inimigo mesmo sabendo que o tempo de algum modo ajudar ia Kiev a receber mais armas da aliança militar ocidental e atrasar a finalização dos seus planos.
O fato que é este embate entre Otan e a Rússia trará como efeito uma reordenação permanente no jogo das correlações de forças geopolíticas no século XXI. O chamado “American Century” está sendo finalizado pela ascensão de novas e futuras potências como a China, cujo protagonismo global vem ganhando força. A própria atuação de Beijing no conflit o russo-ucraniano demonstra que é guiada por projetos de longo prazo: a colaboração no enfraquecimento do poder norte-americano de determinar a “punição” de seus inimigos pela via econômica, a consolidação no futuro próximo do Brics como um “influencer global”, a diminuição do dólar como moeda internacional e o apoio ao multipolarismo como base do sistema internacional no atual século.
O que podemos notar de maneira clara é que já estamos vivendo esse processo.
 
Charles Pennaforte é doutor em Relações Internacionais pela Universidad Nacional de La Plata (Argentina) e professor de Geopolítica do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas.
Informar-se e formar opinião própria https://bit.ly/3Ye45TD

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