O impiedoso mercado de medicamentos
Luciano Siqueira
Os dados são de pesquisa realizada pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), mas certamente refletem a realidade de todo o país. “Quase metade dos médicos receita o que a fábrica indica. Quatro em cada cinco médicos recebem visita de fabricantes; desses, 48% indicam remédios sugeridos pela indústria”- assinala a manchete e o lead de extensa reportagem publicada pela Folha de S. Paulo sobre o assunto.
Adiante se registra a conclusão do Cremesp de que existe uma "relação contaminada com a indústria farmacêutica e de equipamentos, que ultrapassa os limites éticos".
Aqui não se trata de satanizar os colegas médicos (o autor dessas linhas é um deles, temporariamente afastado das atividades profissionais). Trata-se de sublinhar os malefícios oriundos de toda uma engrenagem da atenção à saúde predominante no país, que hoje rebaixa sensivelmente a qualidade dos atos médicos. No setor público, via de regra pela precariedade das condições de trabalho; no setor privado, que vive à mercê de convênios com os chamados planos de saúde ou de verbas sempre insuficientes provenientes do SUS, pela pressão diária em favor da produtividade.
Clínicas e outros serviços são montados a custa de pesados investimentos, que exigem retorno. É a “medicina argentária” a que se referia o professor Adônis Carvalho em seu discurso de paraninfo da turma de 1972 da Universidade Federal de Pernambuco, com a qual não pude colar grau por ter sido cassado em meus direitos estudantis pelo regime militar.
O profissional médico termina sendo vítima dessa engrenagem. Sobretudo da indústria farmacêutica e de equipamentos. A cada dia novos medicamentos são criados, assim como sofisticados artefatos destinados ao diagnóstico ou à terapia. É preciso estar atualizado, reza o senso comum. Tanto que o assédio começa ainda durante o curso de graduação, segundo assinala a pesquisa do Cremesp. Nada menos que 74% dos médicos declararam ter presenciado ou recebido benefícios durante os seis anos de curso.
Felizmente não são poucos os médicos que rompem com esse círculo vicioso, apostando na relação mais humana com o paciente, tratando cada caso em sua individualidade e lançando mão de procedimentos terapêuticos mais simples e por isso mesmo mais eficazes.
O fato é que os resultados da pesquisa do Cremesp se constituem em grave problema de saúde pública, típico do desenvolvimento capitalista. Karl Marx tinha razão ao afirmar que o capitalismo a tudo transforma em mercadoria – inclusive, no caso, os agravos à saúde das pessoas.
É preciso superar os padrões atuais de funcionamento da sociedade brasileira para que se retomem os fundamentos éticos e humanitários da atenção à saúde.
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