Marco Albertim, no Vermelho
- Você vai ficar. Se não aceitar a decisão, caia fora.
Juvêncio Cobra saíra de manhã. Deixara na sacola de duas alças, o bastante para se locomover sem o embaraço de pesos inúteis: o par de alpercatas de couro que usaria no chão lamacento das matas do Araguaia, o macacão ainda com cheiro de óleo, inda que lavado para se entranhar do cheiro da buritirana, três camisas de algodão, grossas, com espessura para ele se defender de espinhos, uma toalha pequena, escova e uma pasta de dentes. A rede, ora... Ele a levava para onde fosse, visto ser o único utensílio de casa a mobiliar a estreiteza entre as duas paredes de taipa da moradia de aluguel. Pedira demissão da fábrica, sob o olhar astuto do gerente, astuto e prenhe de inquirições.
- Sim. Não tem outro jeito! – insistiu Chico Luciano – Só há duas passagens. Vamos eu e Elga. Você, só daqui a um mês quando outra pessoa virá com outra passagem para você viajar.
- Mas... Não é certo o que vocês estão fazendo. Pedi demissão do trabalho. Não tenho para onde ir. Só há um lugar para mim, o Araguaia!
Juvêncio Cobra gritou, gritou como se estivesse pedindo munição para sua arma descarregada de balas. Podia, porquanto se tratava de uma decisão em que as chances de perda da vida seriam uma minúcia a mais na rotina tormentosa dos três. Elga, junto com Chico Luciano, pusera-se sob a guarda do marido, certa de que, mesmo longe do leito que usaram para o coito sem juras de fidelidade, agora teriam o vão de uma grota para a celebração sancionada pelo comando guerrilheiro a que estariam sob mando.
- Vocês estão me deserdando! – insistiu Juvêncio Cobra.
O grito misturou-se ao ruído da broca motorizada. O operário que a manipulava ouviu a última palavra do que Cobra dissera. A broca, no entanto, abrira um sulco a mais no asfalto desbastado o ano inteiro pelo trânsito de carros. Por mais que o desespero no rosto do moço acobreasse o suor basto, o motor da furadeira, o trânsito dos ônibus na via ao lado, o rosto inerte, espreitador, do chefe de turma, tudo se juntou para encobrir o espanto de Juvêncio Cobra. O operário tinha na mira o asfalto indefeso. Cobra, o susto por distinguir no franzido da testa de Chico Luciano, o pouco caso por sua iminente mão de obra no destravar de um gatilho de fuzil.
Chico Luciano e Elga, em cujo perfil se percebia o propósito de se livrar do embaraço, voltaram-se para Juvêncio Cobra; voltaram-se para ler nos olhos do operário o curso de um discurso não pronunciado, expresso nas linhas horizontais de sua testa.
- Sou ferramenteiro! – insistiu ele – Posso ser útil no conserto de armas.
Juvêncio Cobra pedira demissão na sexta-feira anterior ao encontro com Luciano e Elga, numa segunda-feira. Todo o fim de semana, juntara-se com amigos da vizinhança, na beberagem mansa de operários hábeis no fabrico de engrenagens de ferro ou aço. O uso do torno, da plaina desbastando metais, da fresa abrindo sulcos em volta do aço em formato redondo, infundira-lhes a crença de que cada peça, inda que não tivessem a assinatura de cada um deles, a eles pertenciam por direito.
- O gerente da fábrica já foi ferramenteiro. Ele tem na gaveta de seu birô, o projeto de uma metralhadora – disse Mundinho, o mais antigo dos operários.
- Para que ele quer? – quis saber Juvêncio Cobra.
- Perguntei a ele, ele não respondeu.
- Dê um jeito de tirar uma cópia.
Mundinho, por ser o mestre da oficina de manutenção da fábrica, tinha acesso sem pedir autorização, à sala do gerente. Conseguiu a cópia, deu a Juvêncio Cobra.
- Para que você quer?
- Para estudar o mecanismo da arma.
Não deixara na sacola com a escassa roupa, o projeto de metralhadora; trouxera-o para o encontro com Chico Luciano e Elga.
- Tenho que viajar agora. Sou mais necessário no Araguaia do que vocês dois. Vejam isto aqui. – mostrou-lhes o projeto.
Chico Luciano e Juvêncio Cobra viajaram juntos. Elga ficou esperando sua vez de ir no final do mês.
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