06 janeiro 2020

Nuances do futebol


Craque não se forma em laboratório nem brota de árvore
Tostão, Folha de S. Paulo

Escuto com frequência que o futebol brasileiro deveria voltar aos anos 1960, à sua essência, ter mais dribles, mais improvisações e mais arte. Naquela época, predominavam a habilidade, a criatividade e a fantasia sobre a técnica. Os brasileiros colocavam os gringos na roda. Chico Buarque escreveu que os europeus eram os donos do campo, pelo posicionamento, e os brasileiros eram os donos da bola.
O futebol mudou. Hoje, predomina a técnica individual e coletiva. Continuam importantes a habilidade, a inventividade e a fantasia. A técnica é a execução dos fundamentos da posição, além da lucidez para tomar as decisões. A habilidade é o domínio da bola, sem perdê-la, mesmo diante do adversário. A criatividade é a antevisão da jogada, a capacidade de surpreender os companheiros, os adversários e o público. Tudo isso, associado às condições físicas e emocionais, forma o talento.
A principal razão de os europeus terem evoluído mais, em relação aos brasileiros, foi o maior acesso à ciência e ao conhecimento. Eles, mais organizados, disciplinados e com melhores condições econômicas, educacionais e sociais, aprenderam muito mais a técnica e passaram a formar profissionais mais bem preparados, em todas as áreas, incluindo o futebol, dentro e fora de campo.
Outro fator importante para o crescimento dos europeus foi a imigração, que levou à formação de melhores jogadores. Os europeus aprenderam a driblar e a fantasiar. Mbappé parece um Ronaldinho Gaúcho, um Neymar. A maioria dos titulares da França é negra. O talento e a imaginação não são mais privilégio dos brasileiros.
Além da queda técnica e tática do futebol que se pratica no Brasil, o jogo, dentro e fora de campo, ficou muito agressivo. Há um excesso de faltas, de tumultos. Criou-se um ambiente de combate, reflexo da violência que assola o país.
Apesar do declínio, o futebol brasileiro continua forte, produz um grande número de excelentes jogadores e é candidato a vencer títulos importantes. Isso ocorre pela mistura de raças, pela tradição, pelo enorme tamanho do país e pelo aprendizado dos jovens que atuam na Europa.
Em vez de frequentarem as escolas públicas, os jovens brasileiros preferem jogar bola e sonhar em se tornar craques e ricos.
O escritor Pedro Maciel, que de vez em quando encontro pelas ruas e bares de Belo Horizonte, disse que as belíssimas jogadas de Neymar são uma mistura do balé do russo Vaslav Nijinski com os mestres brasileiros da capoeira.
O surgimento de craques não depende apenas do planejamento e de ótimas estruturas de formação de atletas. O acaso também está presente. O Barcelona, dirigido por Guardiola, reuniu, em uma mesma época, inúmeros craques formados juntos na base. Alguns ainda brilham, como Piqué, Busquets e Messi. Levará um longo tempo para que haja tantos craques juntos em La Masia, excelente centro de treinamento da base do time catalão, ou talvez nunca mais aconteça.
Há dezenas de exemplos em todo o mundo, em clubes e em seleções. Os garotos Robinho e Diego estrearam no Santos porque o clube não tinha dinheiro para pagar os profissionais. Quem sabe aconteça o mesmo no Cruzeiro, que, falido, deve apelar para os meninos da base? Seriam as gerações brasileiras magistrais de 1958, 1970 e 1982, chamadas de essência do futebol brasileiro, consequências também do acaso?
É espetacular quando se une um ótimo planejamento com o imponderável. Um potencializa o outro. Craque não se forma em laboratório nem brota de árvore.
[Inlustração: Giulio Turcato]
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