FAKE NEWS VERSÃO 2.0.22
Para
não repetir 2018, TSE terá de ser mais eficiente ao enfrentar milícias digitais
Pedro
Abramovay, João Brant e Daniela da Silva, revista piauí
“Nós podemos absolver por
falta de provas, mas sabemos o que ocorreu. Sabemos o que vem ocorrendo e não
vamos permitir que isso ocorra.” A frase de Alexandre de Moraes, ministro do
STF (Supremo Tribunal Federal) e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), foi dita
no final de outubro do ano passado no julgamento da ação que pedia a cassação
da chapa Bolsonaro-Mourão por disseminação em massa de fake
news nas eleições de 2018. O pedido foi rejeitado por
unanimidade, mas a declaração do ministro, que presidirá o TSE a partir deste
ano, sintetiza o imbróglio em que o Tribunal está metido na tentativa de fazer
frente às milícias digitais que praticaram e seguem praticando estratégias de
desinformação. Olhando para 2022, o elemento mais desafiador é fazer com que o
“não vamos permitir que isso ocorra” seja uma declaração de força real sobre as
eleições, e não uma profecia irrealizável.
Não se pode dizer que
seja um sinal de saúde para uma democracia que o processo eleitoral tenha que
se iniciar com afirmações de força da Justiça Eleitoral. Um bom juiz de futebol
é aquele que não é lembrado depois do jogo. Talvez o mesmo princípio valha para
árbitros eleitorais. Acontece que, de fato, não são tempos normais. A mais
antiga democracia do mundo, a dos Estados Unidos, há pouco mais de um ano
passou por um questionamento violento ao seu sistema eleitoral. E, se é verdade
que o sistema eleitoral brasileiro é muito mais robusto do que o americano
(mais independente, mais inclusivo e mais eficiente), o cenário eleitoral
brasileiro é muito influenciado pelo cenário norte-americano. Incluindo a
importação de boatos e notícias falsas, e a nacionalização de campanhas de desinformação
e ódio que já se tornaram tendências globais.
Não à toa o presidente
Bolsonaro emula seu parceiro Trump nos ataques constantes ao próprio sistema
que o elegeu. Trump e Bolsonaro tentaram ativamente burlar regras eleitorais, e
os dois acusam o sistema de favorecer seus rivais. Em um vídeo que circula
pelas redes sociais de influenciadores bolsonaristas, Steve Bannon, o famoso
marqueteiro de Donald Trump, comenta a eleição brasileira: “É a segunda mais
importante do mundo, e será a mais importante de todos os tempos na América do
Sul. E Bolsonaro vai vencer, a não ser que seja roubado – adivinhem pelo quê?
Pelas máquinas.” Bannon se referia, é claro, ao nosso resiliente sistema de
voto eletrônico. E apesar de esse ataque — sem nenhuma base lógica — ao
processo eleitoral brasileiro desrespeitar a política de integridade cívica do
Twitter, seu conteúdo permanece no ar até agora.
Nesse
contexto, a independência da Justiça Eleitoral está constantemente sendo
questionada e ameaçada. Assim, para voltar à metáfora futebolística, os
árbitros eleitorais ficam em uma situação parecida à de juízes de futebol que
apitam jogo de time de cartolas poderosos e sempre críticos da arbitragem:
passam o jogo com medo de favorecer o adversário e evitam prejudicar o time da
casa. Ou seja, se o TSE for duro demais contra Bolsonaro dará razão aos ataques
que ele faz ao poder. Se não fizer nada ele atuará, mais uma vez, de forma
ilegal durante o pleito.
Nos últimos meses, houve
clara sinalização por parte do TSE de que não quer repetir 2018 nas eleições
deste ano. Em suma, não quer ser mero espectador de estratégias maciças de
tentativa de manipulação da opinião pública que, a despeito da falta de
consenso sobre o tamanho do impacto no voto, impactam de forma definitivamente negativa
o processo eleitoral. O julgamento da ação contra Bolsonaro-Mourão trouxe
discursos fortes, como o de Moraes, e um voto do ministro Luis Felipe Salomão
que caracterizou os disparos em massa de fake news como
crime eleitoral, desde que cumpridos determinados critérios. O mesmo ministro,
como corregedor do TSE, havia determinado, dois meses antes, a interrupção do
financiamento de contas que propagam desinformação no YouTube. Ainda em 2021, o
ministro Barroso oficiou as plataformas digitais pedindo colaboração no
enfrentamento à desinformação. Com a ausência de respostas do Telegram, em
janeiro deste ano, o TSE passou a discutir e avaliar concretamente a
possibilidade de suspensão do serviço.
A questão chave no
momento é que não está claro se a Justiça Eleitoral terá, de fato, dentes para
fazer valer o que anunciam os discursos de suas autoridades. As regras que
organizam o processo eleitoral mudaram muito pouco nos últimos anos. A proposta
do novo Código Eleitoral, que unificaria a legislação e traria atualizações
importantes na definição de condutas ilícitas nessa área, passou na Câmara dos
Deputados mas não foi apreciada a tempo no Senado. O Projeto de Lei 2630,
apelidado de PL das fake news, está desde julho de
2020 na Câmara dos Deputados, e só em novembro de 2021 foi aprovado por um
Grupo de Trabalho (que faz as vezes de comissão informal em uma Câmara com
procedimentos atípicos em meio à pandemia). Se aprovado pelo plenário, terá de
voltar ao Senado, ser aprovado, passar por sanção presidencial, depois ter os
vetos apreciados. Isso sem contar o vacatio legis,
período entre a sanção e a efetiva aplicação dos termos da lei. Parece muito
improvável que o projeto tenha efeito significativo este ano.
A única mudança que
houve foi na resolução eleitoral que trata de propaganda eleitoral que, graças
a uma ação da sociedade civil que incidiu no processo de consulta pública,
trouxe alguns avanços. Entre eles, a caracterização de desinformação contra o
processo eleitoral como crime e a proibição de que as campanhas paguem
influenciadores digitais para fazer propaganda eleitoral em seus canais. São
mudanças interessantes, mas parece pouco para dizer que 2022 será muito
diferente de 2018.
As eleições municipais de
2020 serviram como uma amostra do equilíbrio factível,
até aquele momento, entre regulamentação, planejamento e execução efetiva do
controle da desinformação online. Dois anos atrás, já sob impacto dos duros
aprendizados do pleito anterior, o TSE dava início ao Programa de Enfrentamento
à Desinformação. O programa contava com a parceria de mais de sessenta
entidades da sociedade civil, incluindo as mais importantes redes sociais
(Facebook, Instagram, Twitter) e o WhatsApp – que, a partir de então, passaram
a ter diálogo direto com uma equipe especializada dentro do tribunal, na
intenção de mitigar possíveis riscos que seus serviços pudessem oferecer ao
processo eleitoral brasileiro.
Com foco muito mais
direcionado à educação e prevenção, o Programa teve uma atuação inaugural ainda
tímida no controle direto da desinformação. Um chatbot no próprio WhatsApp
serviu como canal extrajudicial de denúncias de disparos em massa de mensagens,
prática proibida durante as campanhas eleitorais – experiência que será
repetida em 2022. Segundo o relatório de impacto do
TSE, 5.229 denúncias foram recebidas, e 1.042 contas
do WhatsApp foram banidas por envio massivo de mensagens relacionadas às
eleições. O monitoramento ativo do TSE e seus parceiros nas redes sociais levou
à localização de 752 “indicações de desinformação”, que foram comunicadas às
plataformas, aos parceiros de checagem e às autoridades competentes, garantindo
inclusive a preservação dos dados para análises futuras.
O programa deixou um
legado evidente de presença e liderança do TSE no debate público sobre
desinformação online. Ainda assim, avaliar o impacto concreto das ações e
avanço verificado em 2020, em relação aos graves problemas experimentados em
2018, é uma tarefa difícil. É fato que a dinâmica informacional das eleições
municipais é galgada nos territórios, muito distinta da que se dá durante as
eleições gerais. Além disso, há a própria falta de transparência das
plataformas, que não divulgam dados detalhados da sua atuação em eleições
anteriores, para fins de comparação. Note-se: o número de contas removidas pelo
WhatsApp por motivos de envio de spam/automação durante o período eleitoral de
2020 foi infinitamente superior ao identificado por meio das denúncias do
tribunal, chegando a mais de 360 mil contas. Em 2018, já haviam sido mais de
400 mil remoções – a CPI das Fake News questionou,
e recebeu como resposta um memorando do WhatsApp com explicações gerais do seu
monitoramento de automação. Em resumo, os métodos e critérios que levaram a
essas remoções autocráticas por parte da empresa nas eleições anteriores
permanecem desconhecidos.
Se as regras mudaram
pouco em relação aos pleitos passados, a chave para entender o que vai
acontecer em 2022 com relação a fake news e
plataformas digitais está no comportamento de quem vai atuar como árbitro: a
Justiça Eleitoral e as plataformas digitais. Essa análise tem sido
feita por pesquisadores que conhecem tanto
de legislação eleitoral quanto de tecnologia, como Francisco Brito Cruz, do
InternetLab.
Do lado das plataformas,
os sinais têm sido dúbios. As redes abertas anunciam pequenos avanços ao mesmo
tempo em que tentam blindar seus modelos de serviço (e de negócio). O Twitter
só anunciou a adoção de um mecanismo de recebimento de denúncia de conteúdo
desinformativo depois de campanha
expressiva liderada pelo Sleeping Giants Brasil.
O YouTube joga duro contra alguns canais de desinformação (como Allan dos
Santos), mas faz vista grossa para atores
políticos importantes e tem sido pressionado por
checadores de fatos do mundo inteiro a tomar atitudes
mais relevantes contra desinformação. O Facebook segue com foco no conteúdo em
língua inglesa e atuando de forma tímida contra páginas cujo principal foco é
desinformar, como revelaram os Facebook Papers e reafirmou uma ex-funcionária
em artigo recente no New
York Times.
Já as redes fechadas,
como WhatsApp (que é do Facebook) e Telegram, operam em ambiente opaco, marcado
pela circulação de milhões de mensagens virais por dia, e geram, pelo seu
próprio modelo de serviço, a impossibilidade de apuração da maioria dos
ilícitos eleitorais ou comuns. Politicamente, as empresas tomam atitudes bem
distintas. Enquanto o WhatsApp criou proximidade com o Tribunal Superior
Eleitoral e anunciou várias medidas que tentam gerar mais “fricção” para a
difusão de fake news, o Telegram sequer
recebeu a comunicação física enviada pelo TSE a seu escritório em Dubai, nos
Emirados Árabes Unidos. Entretanto, alguns advogados eleitorais avaliam que não
há muita diferença entre elas no real acesso a dados que podem ser usados para
identificar responsáveis pela disseminação de fake news.
Estamos a oito meses das
eleições, e o fato é que, apesar de sinalizarem abertura e interesse em
colaborar com as autoridades brasileiras, nenhuma das plataformas e serviços
citados acima divulgou até agora um planejamento concreto e detalhado de como
será sua atuação durante o processo eleitoral brasileiro – se haverá equipe
local de recebimento de denúncia e avaliação de conteúdo (e segundo quais
critérios), quais as tecnologias e métodos a serem importados/aplicados no
controle de comportamento inautêntico, se haverá marcação de conteúdo sensível
com direcionamento para fontes de checagem oficiais (como já acontece em
algumas delas em relação à informações sobre a pandemia de Covid).
Por sua parte, a Justiça
Eleitoral parece menos preparada do que ela mesma julga ser necessário para
enfrentar as fake news. No julgamento da chapa
Bolsonaro-Mourão, o ministro Salomão afirmou que “o uso de aplicações digitais
de mensagens instantâneas visando promover disparos em massa contendo
desinformação e inverdades em prejuízo de adversários e em benefício de
candidato pode configurar abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de
comunicação social, nos termos do artigo 22 da LC 64/1990 [Lei de Inelegibilidade],
a depender da efetiva gravidade da conduta, que será examinada em cada caso
concreto”.
De acordo com a tese
dele, a gravidade precisa ser avaliada com base nos seguintes parâmetros: (a)
teor das mensagens e, nesse contexto, se continham propaganda negativa ou
informações efetivamente inverídicas; (b) de que forma o conteúdo repercutiu
perante o eleitorado; (c) alcance do ilícito em termos de mensagens veiculadas;
(d) grau de participação dos candidatos nos fatos; (e) se a campanha foi
financiada por empresas com essa finalidade. Acontece que a realidade dos
aplicativos fechados de mensagem pode tornar virtualmente impossível a
observação desses cinco parâmetros.
Na avaliação de
advogados eleitorais, alcançar esses elementos de prova em redes abertas exige
um alto grau investigativo, mas ainda é possível. Em redes fechadas, contudo, a
missão parece bem mais difícil, a não ser que um denunciante interno de uma
parte envolvida resolva expor todas essas informações. Será necessário que o
Tribunal trabalhe com teses mais flexíveis, que já têm sido adotadas em
determinados julgamentos – considerar, por exemplo, que é suficiente avaliar a
gravidade dos fatos em vez de tentar entender o real impacto das fake
news sobre o voto do eleitor, o que, na prática,
é impossível de medir.
Os julgamentos das ações
de 2018 mostraram que a falta de provas sobre alcance e impacto foram decisivos
para se afirmar que não houve como provar a gravidade da disseminação de fake
news no processo eleitoral. Em um cenário em que
as redes fechadas ou não respondem ou não cedem dados relevantes – como, apesar
dos esforços do tribunal eleitoral, seguiu acontecendo, na maioria dos casos,
em 2020 e 2018 – o acesso a essas informações passa a ser dependente da
capacidade de as partes produzirem provas diretamente. Em uma campanha que se
dará de forma predominantemente digital, o acesso a dados em tempo oportuno se
torna essencial para viabilizar a contenção da disseminação de fake
news durante a campanha e o julgamento adequado
das ações depois do pleito.
Se a Justiça Eleitoral
estará preparada para apoiar as partes na obtenção de provas e atuar de forma
rápida para reduzir danos, isso ainda está pouco claro. Sem viabilizar isso,
talvez as eleições de 2022 sejam mais parecidas com as de 2018 do que alguns
ministros imaginam que será. E, se isso ocorrer, a credibilidade que a Justiça
Eleitoral conquistou principalmente depois da Constituição de 1988 ficará
definitivamente abalada. Hoje, nos Estados Unidos, há uma percepção, tanto
entre democratas quanto republicanos, de que o sistema eleitoral favorece seus
oponentes. Esse é um legado profundo e grave da radicalização política levada a
cabo por Trump. Cabe ao TSE evitar que sigamos pelo mesmo caminho.
.
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nos fatos e tendências https://bit.ly/3n47CDe
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