Veneno ofertado como remédio
José Bertotti*
Em plena calamidade
de saúde pública causada por um vírus que já vitimou mais de 5 milhões e 800
mil pessoas no mundo inteiro, a Câmara dos Deputados tira da gaveta um projeto
que tramitava há 20 anos e aprova o PL do Veneno. Esse projeto, que deve passar
pelo Senado Federal, ainda pode ser reprovado, flexibiliza o registro de
agrotóxicos no Brasil, retirando da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e
do Ministério do Meio Ambiente atribuições que estavam consignadas em Lei com
previsão constitucional desde 1988.
O toque de crueldade
é que esse projeto de lei não chama mais os agrotóxicos pelo nome que lhe é
devido e, como num passe de mágica, imagina afastar a periculosidade desses
verdadeiros venenos e passa a denominá-los de “produto fitossanitário” e
“produto de controle ambiental”.
Esse PL foi aprovado
sem levar em consideração manifestações da Fiocruz, da Anvisa e do Ibama, entre
outras instituições públicas. A Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência (SBPC), presidida hoje pelo cientista Renato Janine Ribeiro e que tem
entre seus presidentes de honra o renomado físico Sérgio Rezende, publicou um
manifesto no qual demonstra apreensão quanto à aprovação desse projeto e
informa que um relatório do Ministério da Saúde, de 2018, registrou 84.206
notificações de intoxicação por agrotóxico entre 2007 e 2015. Além disso, a
Anvisa apontou em 2013 que 64% dos alimentos no Brasil estavam contaminados por
agrotóxicos.
A justificativa para
aprovar esse projeto seria destravar a aprovação de novos agrotóxicos para
incrementar nossa agricultura, mesmo que em detrimento de salvaguardas à saúde
e ao meio ambiente.
Vendo isso, lembrei
de uma das conversas que tive com o professor Sérgio Rezende quando ele foi
ministro da Ciência e Tecnologia em 2010, e eu era secretário de Ciência,
Tecnologia e Desenvolvimento do Recife. Discutíamos sobre a aplicação do Fundo
de Universalização dos Serviços de Telecomunicação (FUST) que agora, em 2022,
somam mais de 36 bilhões de reais, e na época também não eram utilizados. E ele
me informava: “Bertotti, esses recursos estão sendo guardados para fazer
superávit primário, uma contabilidade que não interessa ao desenvolvimento
brasileiro”. Ou seja, esse é apenas um exemplo de como desperdiçamos alternativas
para direcionar nossos esforços de desenvolvimento que não coloquem em risco
nossa saúde e o meio ambiente.
Mas se não bastassem
os problemas de saúde pública, já causados pelo uso indiscriminado de
agrotóxicos ao longo dos anos no Brasil e no Mundo, vivenciamos hoje os desequilíbrios
ambientais que nos trazem a situação da pandemia da covid-19. Além disso, há os
danos causados ao planeta pelos mesmos desequilíbrios ambientais que nos trazem
a situação de emergência climática, que segundo uma das maiores seguradoras da
Alemanha, a Munich Re, aponta em relatório divulgado em janeiro de 2022 que os
desastres naturais ocorridos em 2021 provocaram prejuízos de US$ 280 bilhões
(R$ 1,58 trilhão) em todo o mundo.
Diante de tais fatos,
precisamos nos dar conta de que a realidade que se impõe é de uma maioria
estabelecida no Congresso Nacional que ignora qualquer apelo fundamentado na
ciência em defesa da vida. Essa maioria conjuntural vota cegamente em projetos
vendidos como geradores de emprego e renda, como foi a reforma trabalhista, uma
desregulamentação do mercado de trabalho votada em 2018 que prometia mais
empregos e nos trouxe a situação de 13,5 milhões de chefes de família sem um
trabalho digno em 2022.
Quando na realidade,
o que mais precisamos é de gente para trabalhar para atender os milhares de
flagelados pela calamidade da covid, e outros milhões de trabalhadores para
darem início ao processo de construção de uma nova infraestrutura de
desenvolvimento que envolva saneamento, habitação digna, rodovias, ferrovias,
portos, escolas, universidades e uma retomada industrial que nos tire do dilema
de produtor de commodities, que se vê compelido a dar veneno para nossa
população para alimentar artificialmente uma produção agrícola que já é uma das
melhores do mundo, e não precisa de leis espúrias como o PL do Veneno.
*Secretário de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco
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