Janet Yellen e a proposta de
novo acordo “Bretton Woods 2”
O que pretendem os Estados Unidos
de uma nova “ordem, baseada em regras” para o comércio mundial
Lecio Moraes*, Blog do Renato
Em 19 de abril passado, Rana
Foroohar, editora do Financial Times, publicou um artigo denominado “É hora de
criar um novo Bretton Woods 2”, referindo-se à reunião de 1944, cujas
resoluções fundaram uma nova institucionalidade econômica e financeira para a
nascente supremacia americana sobre o chamado “mundo livre”. O artigo tem como
fonte uma conferência da secretária de Tesouro americano, Janet Yellen, para o
Conselho Atlântico, um conhecido think-tank do liberalismo. Nela Janet Yellen
defende a necessidade de se pactuar uma “nova ordem, baseado em regras” para as
relações comerciais internacionais.
A proposta da “nova ordem”,
esboçada e densamente condensada, objetiva proteger o comércio de concorrentes
“desleais”, e que fazem uso político de seus recursos naturais para
desestruturar nossa (Estados Unidos) economia e exercer “alavancagem
geopolítica indesejada”. A nova ordem limitaria ou expulsaria aqueles que assim
procedem, “promovendo não apenas “o livre comércio”, mas “o comércio
seguro”.
Esse pronunciamento exploratório “oficial”, será tema obrigatório nas discussões sobre o comércio como também de geopolítica, pois ele marca a volta da intervenção do Estado sobre as “regras de mercado”, limitando-as por “valores políticos” – pelo menos para os Estados Unidos.
Este artigo comenta a proposta exploratória do Bretton Woods 2, seus objetivos, bem como as dificuldades em viabilizá-la.
Porém, como a proposta toma por
base inicial críticas ao comportamento supostamente desleal de outros países
membros da Organização Mundial de Comércio, considero conveniente iniciar minha
análise trazendo um relato bastante resumido sobre a prática histórica dos
Estados Unidos em relação às instituições criadas e patrocinadas por ele desde
os Acordos de Bretton, em 1944. Um comportamento caracterizado por ações
prejudiciais, quando não paralisantes, contra as sucessivas “ordens, baseadas
em regras”, para adaptá-las, abandoná-las ou destruí-las de modo a atender as
necessidades mutantes dos Estados Unidos.
1. O grande
transgressor da ordem internacional
Os acordos de Bretton Woods
estabeleceram a nova ordem – o arcabouço fundante do espaço da hegemonia
americana sobre o “mundo livre”, estabelecendo a bipolaridade com o campo da
União Soviética.
Nesse acordo, para integrar os países do “mundo livre” os Estados Unidos ofereceram uma abrangente ordenação, institucionalizando regras internacionais para o comércio (GATT ); o financiamento para reconstrução e desenvolvimento (BIRD, Plano Marshal e japonês); o sistema monetário (o dólar-ouro); e o Fundo Monetário Internacional – como emprestador de última instância para solução de crises cambiais.
No centro dessa institucionalidade estava o novo sistema monetário internacional, baseado no dólar, como moeda de referência de valor e de comércio – o dólar-ouro. Uma moeda livremente conversível em ouro pelos países aliados, e garantido pelos Estados Unidos, equivalendo a 35 dólares por onça-Troy (31 gramas). Garantido pelos Estados Unidos, que representavam, à época, 40% do PIB mundial e detinha dois terços do ouro existente, o dólar era visto com “tão bom quanto o ouro”.
O caso do dólar como padrão-ouro
Após uma década a reconstrução
europeia, ao final dos anos 1950, ultrapassou a produtividade da indústria
americana, passando a Europa Ocidental a ter superávits comerciais recorrentes
frente aos Estados Unidos. O resultado disso foi o crescente acúmulo de dólares
no exterior. Por isso, desde o início dos anos 1960, os países europeus
(especialmente a França) passaram a reivindicar a troca de seus dólares por
ouro, pela taxa de câmbio fixada em 1944.
Durante toda essa década de 1960, os Estados Unidos negaram-se a cumprir a cláusula do dólar-ouro, a regra por eles patrocinados. Em 1971, enfrentando uma situação irreversível de inadimplência monetária frente à Europa Ocidental, o governo americano renegou unilateralmente o “acordo baseado em regras” do dólar-ouro, destruindo o sistema monetário de Bretton Woods. Além disso, criou barreiras tarifárias em proteção de sua indústria, violando também uma regra sensível do acordo do comercial do GATT – outra instituição por eles criada e patrocinadas.
Em 1973, em seguimento, o governo Nixon impôs um acordo pelo qual sua moeda flutuaria de acordo com a sua cotação no mercado financeiro… americano. Ao prejudicar direta e abertamente esse compromisso, sem nenhuma possibilidade de defesa por parta de seus hegemonizados, sua posição passou a se caracterizar em uma supremacia. Uma supremacia que tinha como contrapartida, a proteção militar, em toda sua área de controle, em especial, a Europa Ocidental, o Japão e a Coreia do Sul.
A violação da do dólar-ouro representou
um duro golpe à economia mundial. O maior e mais desleal “calote” da história ,
causando perdas relevantes às reservas monetárias acumuladas, tanto da Europa
como em toda área de sua nascente supremacia, trazendo consigo o fenômeno
inédito da estagflação enquanto a periferia era varrida por crises
cambiais.
A partir desse movimento de um
dólar apenas fiduciário e com uma taxa flutuante, a moeda americana passou a
ser emitido sem limites. Criando um sistema excêntrico em que os Estados
Unidos, desde então, financia seu déficit em sua conta corrente, em qualquer
volume, ao mesmo tempo em que “repatria” os dólares enviados, sob a forma de
compra de títulos de sua dívida pública e o investimento estrangeiro em sua
economia.
O caso do GATT: destruindo para
ganhar
Concluída a destruição do sistema
monetário de Bretton Woods, a partir dos anos 1970, os Estados Unidos,
começaram a inviabilizar o acordo multilateral do GATT que, até então, também
beneficiava as economias de “livre mercado”, engajadas à sua supremacia. Além
do uso de barreiras tarifárias extraordinárias, na crise de 1971, os Estados
Unidos passaram a negar quórum nas instâncias onde as decisões de contenciosos
podiam lhes ser desfavoráveis. Em 1982, sua ação subiu de nível, passando a
obstruir os trabalhos da chamada Rodada Uruguai, que tinha por objetivo
atualizar as regras do GATT, permitindo sua ação às mudanças por que passava o
comércio internacional. Sem essa atualização, o GATT tornou-se crescentemente
obsoleto para exercer sua função regulamentadora. Apesar de alegar motivos
diversos à sua obstrução, o objetivo dessa obstrução estava bem longe de ser um
problema tarifário ou mesmo ligado ao comércio.
Nos anos 1980, com o avanço da
tecnologia de informação e sua expansão para novas áreas tecnológicas, abriu-se
um novo e promissor campo de produção de riqueza e novos dispositivos de defesa
militar para os Estados Unidos. Embora novas leis garantissem a proteção legal
da propriedade de direito intelectual – um direito novo e diverso do monopólio
conferido pela patente industrial – essa propriedade não era reconhecida no
restante do mundo. Assegurar o monopólio de criação dessas novas tecnologias
para sua indústria nascente, garantindo a proteção internacional à propriedade
do direito intelectual, passou a ser estratégico e prioritário para os Estados
Unidos.
Mas qual era a ligação entre a
estratégia americana de promover o reconhecimento internacional do direito
intelectual e as negociações do GATT, já que nada tinha a ver com a área de proteção
de invenções? O problema dos Estados Unidos era que uma negociação para que
outros países aceitassem reconhecer o direito da propriedade intelectual seria
muito custosa, já que a vantagem assimétrica dos EUA nessa matéria era
extraordinária. Nessas condições, seria necessário fazer concessões a muitos
países, significando abrir exceções a aplicação do novo tipo de propriedade.
Abrir essas “brechas” afetaria os ganhos e a competitividade futura dos novos
ganhos monopolistas, algo contraproducente ao objetivo americano.
A estratégia então adotada foi
negociar o novo direito de propriedade de forma conjunta, acoplada, à Rodada
Uruguai. Desse modo, as concessões a serem dadas em troca da proteção
internacional da propriedade intelectual, seriam dadas no tema das tarifas e
barreiras e comércio, mantendo intacto o direito absoluto da propriedade
intelectual.
Essa estratégia de longo prazo foi
a razão pela qual os Estados Unidos iniciaram, em 1982, a obstrução das
negociações da Rodada Uruguai do GATT, abusando de seu poder e agindo de má fé.
Nesse quadro é que, no início dos
anos 1990 e após duas décadas de obstrução – a Rodada Uruguai foi reiniciada,
agora negociando, além das regras de comércio, o tema da propriedade do
intelectual.
A mais importante concessão
americana e relação ao comércio internacional foi a criação de um novo
organismo em substituição ao GATT, onde os EUA se comprometeram à criar novos e
mais garantidos mecanismos de solução de controvérsia sobre tarifas e barreiras
comerciais. O mecanismo para solução de controvérsia foi a conquista mais
significativa dos países-membros. Foi constituída, então, painéis permanentes
de negociação, formadas por partes interessadas e mediadas por árbitros
independentes. Assim, em 1995, nascia a Organização Mundial do Comércio,
integrando a ela o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade
Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS).
Mais uma vez os Estados Unidos,
para atender seus novos interesses, negociando de forma desleal e de má fé, descontruíram
uma ordem, baseada em regras, criadas e patrocinadas por eles
mesmos.
O caso da OMC – descontruindo para
substituir outra vez
Assim como o GATT, a Organização
Mundial de Comércio é restrita aqueles países considerados como economias de
“livre mercado”. Mas essa condição foi negociada, tornando possível a adesão da
China, em 2001, e da Rússia em 2012.
Em 2001, quando iniciada a primeira
grande conferência da OMC, a chamada Rodada Doha, destinada a fazer avançar a
redução de tarifas e barreiras ao comércio, inclusive o tema sobre restrições
às patentes de medicamentos, a posição dos EUA começou a mudar. Essa Rodada foi
a primeira iniciativa de atualizar as regras da OMC, resolvendo certos aspectos
que ficaram em aberto em 1995 – como restrições a patenteamento de certos
medicamentos, de grande interesse de sua indústria farmacêutica. Nela os
Estados Unidos mudaram seu comportamento frente ao Acordo da OMC.
Aproveitando-se de um ambiente fértil em conflitos bilaterais, os Estados
Unidos passaram, a obstruir a Rodada Doha, e que se mantém suspensa até o
momento.
Após a obstrução da atualização
das regras da OMC, os EUA deram continuidade à sua política de boicote, já no
primeiro governo Obama, passando a negar quórum para o funcionamento
multilateral de vários painéis de solução de conflitos que envolvessem seus
interesses. Ganharam o TRIPS, mas voltaram à situação pretérita de não se sujeitar
as decisões de órgãos multilaterais da OMC
Com Trump, os Estados Unidos foram
além. As vagas de direção da Organização para as quais os Estados Unidos têm
direito de assumir, começaram a permanecer vazias. Trump definiu a posição de
boicote dos Estados Unidos à OMC por causa do “comportamento desleal de outros
países”, causando “prejuízos à América”. Apesar dos termos vagos, a mensagem
era dirigida a política chinesa de que empresas que se instalem no país,
tirando proveito de seu mercado interno e as vantagens de sua plataforma de
exportações transfiram, com algumas exceções, sua tecnologia com empresas
locais. Uma prática comum em vários países, até mesmo quando envolve tecnologia
militar.
Desde então, o governo americano
vem impondo sanções comerciais unilaterais a vários países membros,
descumprindo regras expressas do Acordo OMC (ver nota 10), bem como, indo mais
além, as têm realizado por razões abertamente políticas ou geopolíticas.
A ausência do seu principal membro
tem encorajado outros membros a também descumprirem regras importantes para o
funcionamento adequado da OMC. Um exemplo notável, que mostra a leniência dos
membros atuais em relação às suas obrigações de fornecer dados à
Organização: entre os membros que têm a importante obrigação de
apresentar notificações anuais dos atos de seus governos que outorguem
subvenções ou medidas compensatórias a empresas nacionais, estão deixando
paulatinamente de serem entregues. Em relação ao ano de 2021, 79 dos 164
membros deixaram de apresentar tais notificações; dos quais 78 membros não as
entregam desde 2019, e 67 seguem sem notificar desde 2017. O crescente
desconhecimento desses dados prejudica crescentemente o acompanhamento de
rotina da Organização e a perda de sua importância para a maioria de seus
membros como instância de solução de controvérsias e conflitos.
Não se trata aqui de negar a
necessidade de a OMC alterar suas regras, adequando-as às condições mutantes do
comércio mundial. Mas sim de que o seu mais importante de seus membros, não faz
e nem mais pretende fazer mudanças de regras de acordo com as instâncias
próprias do estatuto da instituição.
Como se vê, o comportamento dos
EUA tem se constituído no grande transgressor das ordens, baseadas em regras,
ordens criadas e patrocinadas por eles mesmos em benefício de sua supremacia.
No decorrer do tempo, os Estados Unidos vêm abusando de seu poder, agindo de
forma desleal e de má fé, comportando-se muitas vezes, como vimos, de forma
prejudicial aos países sob sua supremacia. É com base nesse histórico de
comportamento que a proposta dos Estados Unidos de uma nova ordem de comércio
deve ser considerada.
2. Um novo Bretton
Woods e a construção de uma nova “ordem, baseado em regras”
Agora, outra vez, os Estados
Unidos tratam de explorar a “necessidade de uma nova ordem baseada em regras”.
Desta vez, os Estados Unidos pretendem reivindicar um reordenamento no comércio
mundial. Uma necessidade claramente motivada pela erosão que vem sofrendo sua
supremacia em várias partes do mundo, especialmente na área econômica e
comercial. Essa proposição de reordenamento vem explicar, como vimos, o
comportamento de transgressão das regras da OMC e a inviabilização sistemática
de negociações que atualizem as regras e o funcionamento norma dessa
Organização. A mesma estratégia usada contra o GATT, agora com o objetivo de
adequar a atual ordem à sua necessidade de refortalecer sua supremacia.
Porém, a argumentação exploratória trazida pela secretária do Tesouro dos Estados Unidos mostra que a preocupação por uma nova ordem se relaciona mais com a restrição à liberdade de comércio ou da livre concorrência, mas sim com a chance de excluir concorrentes mais competitivos, mesmo que isso negue a crença fundamental capitalista de que obstrução à livre competição reduz a eficiência do capitalismo.
Agora, a argumentação pela nova ordem centra-se em acusações de deslealdade e na necessidade de submeter as relações de comércio às necessidades e às regras internas do Estado americano. Anuncia-se o fim da globalização, recuperando-se a primazia da raison d’état sobre o “laissez faire, laisez passez” da globalização neoliberal.
A secretária do Tesouro dos
Estados Unidos, Janet Yellen, assim expressa esse objetivo perante o Conselho
Atlântico:
“Não [se deve] permitir que os
países usem sua “posição de mercado” em matérias primas, tecnologias ou
produtos fundamentais a fim de ter o poder de desestruturar nossa economia ou
de exercer alavancagem geopolítica indesejada. (…) Embora as cadeias de
suprimentos tenham se tornado muito eficientes e excelentes em reduzir os
custos operacionais, não são resilientes. Ambos os problemas têm de ser
enfrentados.”
Deixando claro, em seguida:
“O objetivo dos EUA não deveria
ser apenas o comércio livre, e sim [o comércio] seguro (…) A existência de uma
economia política na qual o livre comércio só pode ser verdadeiramente livre se
os países estiverem operando com valores compartilhados e em
igualdade de condições.”
Já adiantando o reforço naquilo
que é a área de maior interesse dos Estados Unidos, Yellen observa a
necessidade dos Estados Unidos “criarem alianças baseadas em princípios em
áreas como a de serviços digitais e de regulamentação de tecnologia”.
Já Foroohar formula, de forma
sintética, aquele que pode ser tomado como o argumento fundante da “nova
ordem”:
“O capitalismo globalizado, em
especial nos últimos 20 anos, simplesmente foi um pouco longe demais em
relação às preocupações domésticas em alguns Estados-nação
específicos”.
Um argumento que – com uma
sinceridade inesperável – declara que a ação de Estados-nação em defesa de seus
interesses domésticos não é extensível a todos os países, mas apenas ao próprio
Estados Unidos. Aos demais membros da “nova ordem”, continuam a valer as regras
do “livre mercado”!
Janet Ellen também observa que,
como vantagem para os parceiros que aderirem à nova “ordem, baseada em regras”
os Estados Unidos darão, um “apoio amigável (…) nas [novas] cadeias de
suprimentos a (…) formados por países confiáveis”, que compartilhem “um
conjunto de normas e valores sobre como operar na economia global”.
A nova concepção de alinhamento
ideológico, com base no “compartilhamento de valores”, como condição para
participar da “nova ordem de comércio”, significa um aprofundamento do conceito
de “livre-mercado”, usado para condicionar a aceitação de membros desde o GATT
e outros acordos de Bretton Woods. Embora essa exigência mais rígida tenha como
alvo principal o Estados chinês, a utilização dessa cláusula será uma faca de
dois gumes, pois, se facilita ações de isolamento e sanções de adversários, ela
também porá em guarda outros importantes aliados, como os exportadores de
petróleo do Oriente Médio (reinos teocráticos e muçulmanos), que se sentirão
igualmente ameaçados, prejudicando a construção de consensos para construção da
“nova ordem”.
Por essa razão, é difícil
acreditar que essa estratégia tão eurocentrista de conformar a “nova ordem”
possa vir a sobreviver em um mundo onde a unipolaridade vigente na década de
1990 não mais existe.
3. Os desafios que
envolvem a construção da nova ordem mundial de comércio
O objetivo evidente da nova
“ordem, baseada em regras” é fraturar o comércio internacional e a própria
economia mundial em esferas excludentes. Para não perder sua supremacia, como
afirma Rana Foroohar, os Estados Unidos devem adotar a solução de “um mundo,
dois sistemas” – uma formulação que parece irônica, dada a origem chinesa da
formulação – embora seu conteúdo esteja invertido.
O objetivo de dividir o mundo em
dois sistemas, tal como aconteceu ao final dos Acordos de Bretton Woods, é a
única razão pela qual Foroohar nomeia a iniciativa como um “Bretton Woods 2”.
No entanto, embora ainda seja a maior potência do mundo, sediando o centro do
sistema capitalista internacional, as circunstâncias mudaram.
A primeira dessas circunstâncias
está na natureza negativa da estratégia de criação de uma nova ordem, baseada
em regras. Em 1944, as propostas dos Estados Unidos em Bretton Woods tiveram um
caráter ofensivo. Aproveitando a assimetria de poder de que gozava e com o
dinamismo de um novo hegemon, liderou a maior parte de países
em um conjunto inédito de instituições, em troca de proteção contra o comunismo
e benefícios comerciais e de investimento, englobando também as colônias das
velhas e exauridas metrópoles europeias, com a promessa de libertação. A
iniciativa de agora é claramente defensiva, não só excluindo da ordem comercial
qualquer potência que afete sua supremacia, como também ameaçar outros países
que optem por dar prioridade de comércio a outra potência rival.
No momento atual, o objetivo
americano de recuperar seu poder parte de uma posição defensiva. Seu objetivo
principal é deter o avanço da China que, nesse momento, está criando novas
opções de ganho e crescimento para muitos países, mesmo que às suas elites
estejam interessadas em manter seu alinhamento com Estados Unidos. Mesmo assim,
os Estados Unidos não aceitam dividir a lealdade desses países com qualquer
outra potência.
Um segundo componente que
facilitou a construção de um mundo bipolar foi a posição das elites nacionais
de outros países, que se sentiam ameaçados por uma União Soviética “fomentadora
de revoluções” expropriantes de suas riquezas e poderes. Uma situação que hoje.
Na situação atual, as elites governante – especialmente na periferia, mas nem
só – preferem aproveitar as vantagens ofertada por americanos e chineses,
concedendo-lhes algum poder de barganha e prosperar, nessa nascente
multipolaridade. Essa posição é bem ilustrada pela declaração do
primeiro-ministro de Cingapura, Lee Hsien Loong, dirigida aos Estados Unidos,
em dezembro de 2021: “não nos façam escolher”.
Uma situação que ainda favorece os
Estados Unidos de ainda estar na liderança de tecnologias de ponta; o de manter
um inigualável softpower no tamanho relativo de sua economia frente ao mundo.
Embora os Estados Unidos mantenham a seu favor o de ser a maior potência
militar do mundo e seu insuperável softpower – sua cultura dominante – e de
também, domiciliam os maiores mercados de capital e financeiro, dotados de
ampla liquidez e profundidade e o dólar a se constituir na maior reserva de
valor do sistema capitalista internacional.
A terceira diferença fundamental,
em relação a 1944, é que a economia mundial está exponencialmente mais
integrada. A parte do mundo segregada dos Acordos de Bretton Woods só mantinham
relações marginais com a economia da União Soviética (e ainda menos com
chinesa). A integração atual é múltipla, ocorre não apenas na produção e no
comércio – nas cadeias produtivas intersetoriais, em nível macroeconômico, mas
também, dentro do processo de produção de uma mesma empresa; e, ainda mais
crucial, como desintegrar as redes cibernéticas globais de informação, que
crescem exponencialmente?
O conjunto dessas novas
circunstâncias trará, certamente, dificuldades relevantes ao processo de
negociação do pretendido Bretton Woods 2, em especial porque as contrapartidas
que os EUA podem colocar na mesa de negociação podem ser fracas. Ainda mais
porque, como vimos, o comportamento negativo dos americanos nos grandes acordos
do passado, pode elevar, em muito, a exigência de garantias sobre essa nova
institucionalidade para sua supremacia.
Certamente seria opção mais fácil
constituir essa “nova ordem” de comércio se ela se restringir a seus parceiros
do Atlântico Norte e a seus protetorados militares do Pacífico. Mas isso seria
um capitis diminutio à sua supremacia americana.
De todo o jeito, acredito, que os
Estados Unidos não tenham opção melhor do que tentar esse acordo de isolar
concorrentes e redividir o mundo. De toda forma, visto a experiências de
negociações no passado, a construção dessa nova ordem, se bem-sucedida,
demorará anos e muitos passos. E, mesmo assim, os futuros e incertos membros da
“nova ordem, baseada em regras”, devem aguardar que os Estados Unidos, visto
sua reputação, estarão prontos a transgredir as regras por eles patrocinadas.
*Economista, mestre em Ciências Políticas pela UNB
.
Olhar atento sobre o que acontece https://bit.ly/3n47CDe
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