25 maio 2022

Origem da vida

A vida surgiu nos cristais

Hipótese de que a primeira forma de vida foi um mineral levanta a questão: qual a fronteira entre vivo e não vivo?
Fabrício Caxito*


Desde o início de sua história, a Terra já dispunha de todos os ingredientes para gerar vida. Os elementos envolvidos na formação de moléculas orgânicas, como carbono, oxigênio, hidrogênio, nitrogênio, enxofre e fósforo, além de vários outros micronutrientes, já eram abundantes nas rochas, nos oceanos e na atmosfera desde que eles se formaram, há cerca de 4,5 bilhões de anos. A energia necessária para "cozinhar" todos esses elementos no caldeirão da Terra primitiva também era abundante, e provinha de diversas fontes: do calor interno do manto terrestre e daquele expelido em fumarolas oceânicas, do decaimento de elementos radioativos, da grande quantidade de impactos de meteoros, e até mesmo de raios.

Em 1953, os cientistas Stanley L. Miller e Harold C. Urey, da Universidade de Chicago, conduziram uma experiência que ficou famosa. Se todos estes ingredientes fossem postos num frasco fechado e "cozidos" por descargas elétricas que simulam raios, diversas moléculas orgânicas, como os aminoácidos, se formariam espontaneamente. O experimento foi repetido inúmeras vezes desde então, e parece confirmar que moléculas orgânicas podem ter sido um componente corriqueiro da Terra primitiva.

Moléculas orgânicas isoladas, porém, estão longe do que podemos chamar de vida. Existem várias definições para este conceito, mas as mais aceitas envolvem algumas propriedades principais: o que é vivo deve ser capaz de se reproduzir, carregar informação genética de geração em geração, e utilizar energia para realizar algum tipo de metabolismo.

A presença de moléculas orgânicas, a base do que chamamos vida, é condição necessária, mas está longe de ser suficiente. E isso porque, entre outros problemas, a "sopa" em que as moléculas orgânicas foram criadas foi provavelmente muito diluída, considerando o gigantesco volume do oceano primordial terrestre. Outro é que não basta produzir aminoácidos, lipídios, açúcares e outros componentes orgânicos: é preciso combinar as moléculas corretas.

A natureza é, de fato, prodigiosa na produção de moléculas orgânicas: um meteorito, por exemplo, pode apresentar mais de setenta tipos de aminoácidos. A vida, porém, é extremamente seletiva: ela usa uns vinte tipos. E é ainda mais exigente: cadeias de composição química idêntica podem apresentar organização de suas moléculas à esquerda ou à direita da cadeia principal, e essa diferença de simetria faz com que as chamadas cadeias de "mão esquerda" se comportem de forma distinta das cadeias de "mão direita" e vice-versa. Por algum motivo, a vida utiliza quase exclusivamente cadeias de mão esquerda.

É necessário, então, algum mecanismo que possa selecionar e concentrar as moléculas de composição e geometria correta, para que uma estrutura autorreplicante e capaz de passar informação de geração em geração possa ser construída, isto é, para que a receita da vida dê certo. Por sorte, a variedade enorme de minerais que compõe a crosta da Terra desde seus primórdios é capaz de fazer exatamente isto, agregando e concentrando moléculas orgânicas em sua superfície. Mais ainda, algumas faces cristalinas de minerais comuns, como o quartzo e a calcita, mostram uma aptidão para selecionar apenas moléculas de determinada geometria, isto é, elas são capazes de selecionar as moléculas de mão esquerda e as de mão direita. Além disto, alguns minerais podem servir como catalisadores de reações químicas, talvez de reações importantes para a formação de moléculas orgânicas, sua reprodução e metabolismo. Poderiam, então, as superfícies cristalinas dos minerais ter funcionado como o primeiro substrato no qual as moléculas orgânicas se organizaram em algo que pode ser chamado vida?

Experimentos neste sentido revelaram que a ideia é plausível. Estruturas de minerais como grafita e molibdenita, por exemplo, se demonstraram capazes de atrair e organizar espécies orgânicas cruciais, como a adenina e a guanina, duas das bases dos ácidos nucleicos, RNA e DNA, em interessantes estruturas bidimensionais. Outros cientistas chegaram a sugerir que não só as bases da vida surgiram nas superfícies dos minerais, mas que a primeira forma de "vida" foi exatamente uma espécie de argilomineral. Essa hipótese, defendida pelo químico Graham Cairns-Smith, da Universidade de Glasgow, volta à questão do que chamamos vida propriamente dita, e se existe algum estágio intermediário entre o vivo e o não vivo. Para Cairns-Smith, algumas espécies de argila carregam uma forma de informação genética em sua estrutura e composição química, com as argilas mais "aptas à sobrevivência" sendo escolhidas em um processo seletivo parecido com o visualizado por Darwin.

Seja como catalisadores de reações bioquímicas, uma tela onde a história da vida pôde ser pintada por meio do agrupamento e seleção das moléculas ideais para sua receita, ou até mesmo como os primeiros seres que de alguma forma poderiam ser interpretados como algo além do não vivo, a relação entre os minerais que compõem a Terra e a vida que se desenvolveu em sua superfície é mais uma prova de como estamos todos interligados em um grande sistema.

[Ilustração: Valentina Fraiz]

Fabrício Caxito é professor de geologia, pesquisador principal no projeto GeoLife MOBILE e filósofo pela UFMG.

O fato e a ideia https://bit.ly/3n47CDe     

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