Planejar
o nosso comércio exterior, precificar a volta do Brasil ao mundo
Elias Jabbour*/portal da Fundação
Grabois www.grabois.org.br
Muito se tem
discutido sobre os termos das relações Brasil-China. Pela direita, seria um
exemplo de utilização de nossas “vantagens comparativas”: afinal, indústria e
agricultura seriam basicamente a mesma coisa e essas “vantagens” foram
amplamente utilizadas pelo governo Bolsonaro, com a concentração de 91% de
nossas exportações para o país asiático em apenas dez produtos. Mesmo entre os dez produtos, há
uma impressionante concentração em três itens: soja, minério de ferro e
petróleo (1). A questão não se encerra aí. Não há problemas em termos a China
como nosso maior parceiro comercial. A contradição está na ampliação do papel
deste país em nossas exportações: em 2021, 46,4% das exportações brasileiras
foram direcionadas à China (2). Detalhe importante é que nenhum item de nossas
exportações tem seus preços criados dentro do país, o que nos deixa vulneráveis ante as flutuações de preços externamente
criados.
Pela “esquerda”, o
próprio fato de uma leitura sobre a China estar presa a formas positivistas e a
um marxismo acadêmico vulgar ainda predomina. Portanto, o fato de se observar
aquela experiência utilizando-se de um pleonasmo (“capitalismo de Estado”)
impede a percepção de que o surgimento de uma nova formação econômico-social
por lá nos obriga a construir novos marcos teóricos, conceituais e categoriais.
Sem isso, não se surpreende tomar a nuvem por Juno e aplicar à China a alcunha
de país imperialista. Ora, se o conceito se manifesta no movimento real, a
ideia não pode vir antes da matéria. Essa nova formação econômico-social enseja
o surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica capazes de
elevar a capacidade do Estado, via grande produção e grande finança públicas,
de intervir rapidamente sobre a realidade (“Nova Economia do Projetamento”) via
execução de milhares de projetos simultaneamente; eleva-se o domínio humano
sobre a natureza; novas regularidades econômicas surgem e urgem
descoberta, currente calamo.
A questão que nos
cabe é que essa capacidade não se circunscreve aos marcos nacionais chineses,
mas nas possibilidades desta Nova Economia do Projetamento ser a base
fundamental ao surgimento de uma globalização alternativa à neoliberal
patrocinada pelos Estados Unidos (3). Seu instrumento institucional: a Belt and
Road Initiative. Rapidamente o eixo da economia internacional está migrando do
Atlântico Norte à Ásia centrada na República Popular da China. Afora o peso do
referido país em nossas pautas de exportações e importações, o esforço de nossa
inteligência nacional deve se remeter à criação de instituições capazes de
potencializar as relações entre os dois países, tendo como marco uma agenda que
priorize nossos interesses estratégicos, sendo o principal deles a
reconstituição de nossa base física a novos e superiores esquemas de divisão
social do trabalho. É fato que o grau de deterioração de nossas infraestruturas
embute um risco à própria integridade territorial do Brasil. Esse é um ponto
fundamental e que deveria ser motivo per se para reflexões que vão além dos investimentos em si.
O desafio das
relações Brasil-China em seu futuro imediato e não imediato demanda certo
esforço de elaboração teórica que escapa muitas vezes àqueles envolvidos neste
tipo de discussão. O campo desta elaboração é a história. A planificação em um
país como o Brasil não tem nada a ver com o que vemos, por exemplo, na
experiência chinesa. Portanto, nessas condições o nosso papel é o de nos
organizar no sentido de aproveitar os movimentos impostos pela vida. Aqui urge
uma necessidade essencial ao que se tem chamado tanto de “reconstrução
nacional” quanto de “volta do Brasil ao mundo”. A nosso ver a volta do Brasil
ao mundo deve ter um preço claro: a nossa reindustrialização. Seu instrumento
fundamental: a planificação do comércio exterior. A percepção dos movimentos
que a vida nos entrega e como aproveitar ao máximo as possibilidades do mundo.
Exemplos abundam.
No final da década de 1950, o Brasil aproveita a tendência do automóvel emanado
dos Estados Unidos. Na verdade, dada as condições incipientes de nossa industrialização àquela época, a opção pela rodovia mostrou-se a mais
correta diante de uma realidade onde o Brasil mal se constituía em um marco
nacional unificado, com as próprias ferrovias existentes espelhando a realidade
de um país formado por “ilhas econômicas”. A opção pelo automóvel e o caminhão
foi parte fundamental da constituição de uma imensa indústria metalmecânica em
nosso país.
O desenvolvimento
das forças produtivas no país nos últimos tempos, sobretudo em nossa
agroindústria, e o aumento dos fluxos inter-regionais de transporte têm
demonstrado os limites da opção rodoviária, colocando na ordem do dia a substituição
da rodovia pela ferrovia no Brasil. Logo, diante de tarefas como a de resgatar
toda a capacidade produtiva destruída pela Operação Lava-Jato, é imperativo de
futuro planificar o nosso comércio exterior no sentido de negociar e operar a
instalação de centenas de milhares de quilômetros de trens de média e alta
velocidade por parte dos chineses.
Assim, a “volta do
Brasil ao mundo” passa a ter sentido com a necessidade de escalar as relações
com esse gigante asiático em patamares superiores, nos mesmos moldes ao que
testemunhamos por parte do Irã (4), que, em uma troca de petróleo por obras
públicas e transferência de tecnologias (criação de um departamento novo na
economia do referido país), inaugura a viragem para uma época em que a lei da
degeneração dos termos de troca não é algo mais absoluta. O ambiente
internacional de acirramento das rivalidades entre EUA e China amplia as
possibilidades do Brasil e da precificação de nossa volta ao mundo. Aos EUA não
interessa a presença chinesa operando a unificação física do Brasil e da
América do Sul. Aos chineses não interessa um Brasil fraco, desintegrado e com
seu tecido social esgarçado. O Brasil é fundamental ao sucesso da empreitada de
um mundo multipolar.
O momento é de
elevar a um patamar muito superior as nossas relações com a China. Toda uma
plasticidade institucional deverá ser construída com a presença das mentes mais
capazes do país, subordinadas ao gabinete da presidência da República, com o
intuito de pensar nossas relações com os chineses como parte fundamental do
resgate do esforço iniciado com a Revolução de 1930. Temos reservas imensas de
petróleo. Os chineses, os bens públicos e suas capacidades produtivas anexas
que o Brasil precisa para a nossa reconstrução. Superar a “nova dependência” e
construir uma industrialização pela planificação de nosso comércio exterior:
estão postas as contradições e as múltiplas formas de superá-las. Parece, mas
não é. O mundo anda tão perigoso quanto propício aos interesses nacionais
brasileiros. Temos quatro anos para construir um verdadeiro casamento de dois
grandes projetos nacionais.
Elias Jabbour é
professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Uerj e autor, com Alberto
Gabriele, de China: O Socialismo do Século XXI (2021) e Socialist Economic
Development in the 21st Century: A Century after the Bolshevik Revolution
(Routledge, 2022). Vencedor do Special Book Award of China 2022.
Notas:
1 Brasil concentra
vendas na China como nenhuma outra grande economia e isso pode ser um problema.
Valor Econômico. 22/10/2022. Disponível em:
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/07/10/brasil-concentra-vendas-nachina-como-nenhuma-outra-grande-economia-eisso-pode-ser-um-problema.ghtml.
2 China é maior
responsável por exportação recorde. Valor Econômico. 14/01/2022. Disponível em:
https://valor.globo.com/brasil/
noticia/2022/01/14/china-e-maior-responsavelpor-exportacao-recorde.ghtml.
3 Sobre isto, ler
Jabbour, E.; Dantas, A.; Vadell, J. (2021). Da nova economia do projetamento à
globalização instituída pela China. Estudos Internacionais, v. 9, n. 4, p.
90-105.
4 Watkins, S. China
Inks Military Deal with Iran Under Secretive 25-Year Plan. Global Research,
jul. Disponível em: https://www.globalresearch.ca/china-inks-military-deal-iran-under-secretive25-year-plan/5718940.
Publicado originalmente no Jornal
dos Economistas
O mundo gira. Saiba mais https://bit.ly/3Ye45TD
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