EUA: O Partido da Guerra
São dois partidos políticos que concorrem, e os candidatos são representantes das elites, sem chance de uma candidatura fora desse padrão.
Williams Gonçalves/Jornal GGN
O processo eleitoral dos Estados Unidos é acompanhado passo a passo em toda parte do mundo. Desde a apresentação dos pré-candidatos nas votações primárias até a reunião do Colégio Eleitoral, quando então é escolhido o candidato que exercerá o mandato presidencial nos quatro anos seguintes, os cidadãos norte-americanos e o amplo público externo são permanentemente abastecidos de notícias sobre todos os discursos e todas as ações daqueles que lutam para exercer o cargo de presidente.
Esse é um quadro que se repete a cada quatro anos, mas que não reserva nenhuma surpresa. São apenas dois partidos políticos que concorrem – Partido Democrata e Partido Republicano –, e os candidatos são legítimos representantes da elite econômica e da elite política do país, inexistindo qualquer possibilidade de uma candidatura que fuja a esse padrão. Os denominados candidatos independentes têm escassa ou simplesmente nenhuma chance de vitória, isso porque da falta de legislação eleitoral nacional resultam legislações estaduais que diferem entre si, o que faz com que seja muito difícil um candidato avulso preencher todos os quesitos determinados por cada um dos 50 estados. Tais dificuldades não impedem que muitos lancem a candidatura, mas raros são os que percorrem todo o trajeto, causando a impressão de que estavam mais interessados em tornar seu nome conhecido, ou ampliar o alcance de uma determinada agenda. Ademais, as campanhas presidenciais requerem recursos financeiros elevadíssimos. Mesmo nos dois grandes partidos concorrentes, as possibilidades de vitória de um pré-candidato dependem, em grande medida, da sua capacidade de obter financiamento para sustentar todas as despesas da campanha.
Apesar desse roteiro não apresentar novidades, ele é sempre acompanhado com muita atenção. Pelo fato de a mídia (americana mas não somente ela) transformar a corrida eleitoral em um grande espetáculo, fica muito difícil ignorá-lo. O processo eleitoral atual não foge desse modelo. Os dois candidatos são bem conhecidos de todos. Da parte do Partido Republicano, figura o ex-presidente Donald Trump, com uma proposta que nada traz de diferente, já que promete seguir a mesma linha de conduta do mandato exercido no período 2017-2021. Da parte do Partido Democrata, aparece a atual vice-presidente Kamala Harris, cuja candidatura foi lançada em meio ao processo eleitoral, devido à desistência do presidente Joe Biden de concorrer à reeleição. Ela, por sua vez, promete dar continuidade às realizações de Biden.
Os temas habitualmente agitados ao longo da campanha também são bem conhecidos. Em primeiro lugar, vem o perfil do candidato: branco(a), negro(a), masculino, feminino. Essa uma preocupação infundada, pois supõe que um ou outro desses perfis determinará o exercício do poder presidencial. Embora a condição financeira possa variar, todas as candidaturas passaram pelo mesmo processo de socialização política. No mais, os temas giram em torno da posição dos candidatos sobre aborto, direitos LGBT, imigração, economia e impostos, saúde, educação, clima e política externa.
Previsivelmente, a quase totalidade dos temas que mobilizam o eleitorado diz respeito às condições de exercício da cidadania, ou seja, são assuntos de ordem interna. A rigor, a preocupação dos que não são cidadãos norte-americanos devia ser apenas com mudança climática e com política externa, pois é evidente que as políticas praticadas pela Presidência nessas duas esferas incidem sobre o restante do mundo, direta ou indiretamente. No entanto, no que diz respeito à política externa, principalmente, os candidatos costumam ser muito econômicos em seus pronunciamentos. Isso acontece, tanto em função da preocupação dos cidadãos e da mídia com os assuntos internos, quanto em função da proximidade dos pontos de vista sobre o assunto dos candidatos, e da dependência das recomendações f eitas por cada setor de uma vasta burocracia especializada, formada por militares, diplomacia e serviços de Inteligência. Todavia, os temas que mais interessam aos estrangeiros são justamente esses de política externa, pois são eles que têm o poder de influenciar o curso da política internacional.
Trump e Kamala para além do senso comum
A campanha eleitoral em andamento expõe uma particularidade em relação às anteriores, que é o fato de Donald Trump ser considerado um candidato que conspira contra a democracia e se cercar de apoiadores de extrema direita. Uma nova vitória eleitoral dele poderia ser a oportunidade para que demolisse de uma vez as instituições democráticas dos Estados Unidos. Pesa sobre ele a acusação de ter instigado seus apoiadores a invadir o Capitólio, símbolo do poder nos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021. Invasão essa motivada pelas consecutivas declarações dele de que somente fora derrotado por Biden em virtude de fraude, sendo ele, assim o diz, o legítimo vitorioso nas eleições. Embora imediatamente acusado de ser o responsável pelas mortes e ferimentos resultantes dos choques entre seguranças e invasores, Trump foi considerado pela Justi&c cedil;a dos Estados Unidos apto a concorrer mais uma vez à Presidência.
Ninguém põe em dúvida a inclinação autoritária de Trump. Não apenas pelo desdém com que lida com as instituições de Estado, mas, sobretudo, pelas soluções que propõe para determinadas questões que incomodam a sociedade norte-americana. Entre essas questões, destacam-se a questão racial e a questão dos imigrantes. Sobre esses últimos Trump concentra toda a virulência de seu discurso, apresentando argumentos torpes e absurdos, que cumprem a função de estimular o ódio e a xenofobia de seu eleitorado, e não de expressar a realidade.
Como expressão da atração que as eleições dos Estados Unidos exercem sobre todo o mundo, há o temor de que Trump, caso eleito, venha a ter grande influência ideológica, contribuindo assim para reforçar consideravelmente o movimento geral de ascensão de ideias populistas e mesmo fascistas que se verifica em todas as partes do planeta, inclusive no Brasil, como já experimentado. Porém, essa ideia não corresponde à verdade dos fatos. Trump expressa, isto sim, um sentimento fortemente nacionalista, como, aliás, explicita o slogan de seu movimento MAGA (Make America Great Again). Trump afirma defender os interesses nacionais dos Estados Unidos, sem ter qualquer pretensão hegemônica. Pretensão essa que, ele alega, tem sido a responsável pelo declínio dos Estados Unidos. Foram as ideias de hegemonia e globalização, defe ndidas pelas elites do Partido Democrata, segundo ele, que determinaram a perda de fôlego econômico e tecnológico do país e, por consequência, as vantagens desfrutadas hoje pela China no meio internacional e junto aos próprios Estados Unidos.
Trump está, portanto, muito longe da condição de líder ideológico internacional. Sua motivação é de índole exclusivamente nacional. Se existem líderes políticos que se inspiram em sua atuação ou em seu discurso, fazem-no por admirá-lo ou por entender que seu estilo pode ser copiado e introduzido em outros contextos nacionais com sucesso. Mas isso não acontece por empenho dele. Pelo contrário, pode-se mesmo constatar que isso o surpreende e o diverte.
Tendo como fundamento essa imagem de Trump como alguém que é inimigo das instituições democráticas dos Estados Unidos e que constituiria uma ameaça à democracia ao redor do mundo, existe toda uma expectativa em torno de Kamala Harris, que seria, desse modo, o seu oposto. Kamala seria a candidata que defende a democracia e que é mais progressista no tratamento dado às questões que interessam de perto os eleitores norte-americanos.
Para quem não é cidadão dos Estados Unidos, que portanto não será alcançado pelo conservadorismo ou pelo progressismo dos seus líderes políticos, mas busca entender o impacto que essas duas candidaturas podem produzir no sistema internacional de poder, não há como não deixar de considerar que Kamala Harris representa o partido da guerra, enquanto Trump representa uma visão mercantilista das relações internacionais, que reduz toda a complexidade da política internacional a uma simples equação de ganhos e perdas. E o caráter das duas candidaturas se evidencia com toda a nitidez quando se as relaciona às principais questões internacionais em que os Estados Unidos se acham envolvidos.
China é assunto de consenso bipartidário
As mais importantes questões de política externa que se colocam para as duas candidaturas à Presidência são: a política para a China, a guerra no Oriente Médio e com a Ucrânia. Do comportamento do governo dos Estados Unidos sob a Presidência de cada uma candidatura dependerão os rumos que esses conflitos tomarão.
Ao que tudo indica, a política vis-à-vis a China não sofrerá mudança, da mesma forma que não sofreu quando da passagem do governo Trump para o governo Biden. Os norte-americanos continuarão, seja quem for que ganhe a eleição, a se preocupar com a ascensão chinesa e sua pretensa disposição de alcançar a posição hegemônica. Uma vez frustrada a ideia de Barack Obama de parceria com a China, passou a prevalecer a disputa aberta no campo econômico e tecnológico, mediante a adoção de drásticas medidas protecionistas, como também a iniciativa de contrair alianças militares na região do Indo-Pacífico.
Em relação à China, é de se prever que quem vier a ocupar a Presidência sofrerá fortes pressões no sentido de tomar medidas mais enérgicas de defesa do interesse nacional, incluído o recurso à guerra. Pelo menos é o que indica o teor de dois relatórios apresentados por comissões de estudo ao Congresso. O primeiro deles, já analisado em artigo aqui no OPEU, foi preparado pela Commission on the National Defense Strategy. Na introdução, os oito especialistas dão uma boa amostra do conteúdo do documento sobre a ameaça chinesa, conforme trecho abaixo:
“Nós também dirigimos nosso relatório ao público americano, que tem sido inadequadamente informado pelos líderes do governo sobre as ameaças aos interesses dos Estados Unidos – inclusive ao cotidiano das pessoas – e que será convocado a restaurar o poder global e a liderança americana. O apoio do público é crucial para as recomendações que fazemos: necessário gasto adicional com segurança, elevação dos níveis do serviço público e nacional, e mesmo potencialmente mobilização para a guerra. […] As conclusões e recomendações neste relatório são unânimes e refletem nosso caráter bipartidário reclamando ação urgente”.
Informe sobre o relatório da CNDS, de autoria do prof. Williams Gonçalves, publicado no OPEU
O segundo relatório, preparado pelo Congressional Research Service (CRS), considerado como uma espécie de think tank do Congresso, e datado de 16 de agosto de 2024, intitula-se China Naval Modernization: Implications for U.S. Navy Capabilities – Background amd Issues for Congress. Nesse relatório, os especialistas afirmam que a China se encontra mais bem equipada, na força naval, para um confronto do que os Estados Unidos. Não apenas por contar com maior número de equipamento (navios, aviões, armas e recursos tecnológicos), mas, principalmente, por possuir uma capacidade produtiva superior. Em vista disso, os pareceristas afirmam que os Estados Unidos não podem tardar em ir para o confronto, pois, se demorar muito a decidir, a capacidade chinesa aumentará de forma significat iva, tornando o confronto derrota certa.
No que concerne ao Oriente Médio, a orientação de Washington dificilmente mudará. Em meio ao quadro regional aparentemente sempre confuso, a política norte-americana é a de se fazer representar por Israel. Desde que os árabes perderam o protagonismo na região, em função da mudança de posição do Egito, que renunciou à condição de líder contra a política de Israel na Palestina, o alvo de Israel e dos Estados Unidos é o Irã. Além de nunca terem se conformado com a derrota que sofreram em 1979, com a chegada dos aiatolás ao poder, norte-americanos e israelenses não admitem a consecução do programa nuclear iraniano. A posse de armas nucleares pelo Irã mudaria completamente o panorama político da região, pois confirmaria o protagonismo do islamismo xiita e limitaria, consideravelmente, a margem de manobra de israelenses e norte-americanos. Tal mudança certamente traria reflexos para a aspiração dos palestinos de organizarem seu próprio Estado. Em vista dessa situação, há setores do Estado norte-americano que convergem com Israel na ideia de fazer guerra ao Irã para eliminar seu programa nuclear. Conquanto Trump tenha rejeitado essa hipótese em seu primeiro mandato, não há como saber qual será sua atitude ante a iniciativa radical de Israel de suprimir todos os focos de resistência à sua política colonialista.
Cálculo político de médio a longo prazo
Dessas três grandes questões de política externa com as quais a nova Presidência deverá se haver, a guerra da Rússia com a Ucrânia é a que se oferece como a mais complexa. Em virtude do envolvimento direto, a nova presidência não terá como contorná-la. Ademais, todos os indicadores apontam na direção de um desfecho próximo, desfavorável à política que vem sendo praticada por Biden de não aceitar nenhum acordo com a Rússia.
A origem da guerra está na ideia nunca provada pelos norte-americanos de que o presidente russo, Vladimir Putin, alimenta o projeto de reconstituir o território da antiga União Soviética. Para impedir que Putin executasse esse suposto projeto, os Estados Unidos passaram a interferir na política interna da Ucrânia, que até então mantinha posição de neutralidade em face do Ocidente e da Rússia. A interferência se fez sentir por meio da onda de protestos que tomou conta da Ucrânia e que culminou com a derrubada do presidente Yanukovich, em fevereiro de 2014, acusado de colocar o país na mão dos russos por ter anulado um acordo de associação comercial encaminhado com a União Europeia.
As revoltas da Praça Maidan, como ficaram conhecidas as manifestações que resultaram no golpe, geraram permanente instabilidade política da Ucrânia, em meio a qual personalidades políticas norte-americanas fizeram questão de participar ativa e presencialmente. A resposta da Rússia se deu imediatamente, com a anexação da Crimeia e com a proclamação das Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk, na parte leste do território ucraniano, em março de 2014. Essa instabilidade culminou com a decisão da Rússia de, em fevereiro de 2022, reconhecer a existência das duas repúblicas do Donbass e, no dia seguinte ao reconhecimento, iniciar uma “Operação Militar Especial na Ucrânia” para proteger a população dessas duas repúblicas da ação repressiva do movimento nazista ucraniano estabelecido nessa região leste da Ucrânia.
Comandada pelo presidente pró-ocidental Volodymyr Zelensky, a Ucrânia logo recebeu todo apoio financeiro e militar das potências da OTAN, lideradas pelo presidente Joe Biden. As intensas relações comerciais que ligavam a Alemanha à Rússia, envolvendo sobretudo o gás russo, foram rompidas, ao mesmo tempo em que os Estados Unidos lideraram amplo movimento de aplicação de sanções econômicas, com o intuito de travar o funcionamento da economia russa. Ao contrário do pretendido pelos norte-americanos, não aconteceu nenhum movimento político russo com a finalidade de derrubar Putin, e a economia da Rússia apresentou notável crescimento, apoiada que foi por China e Índia. E, não obstante os Estados Unidos conseguirem alinhar a totalidade da Europa e ainda incluírem novos países na estrutura militar da OTAN, em nenhum momento a Rússi a deu sinais de desistência de sua posição inicial. Enquanto isso, a Ucrânia, que já consumiu quantidades colossais de dinheiro e material militar, a cada dia que passa, dá demonstração de que já não consegue se sustentar em guerra.
Leia por que
os EUA semeiam a guerra https://lucianosiqueira.blogspot.com/search?q=EUA+no+Oriente+M%C3%A9dio%5D
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