21 outubro 2024

Grandes empresas & espaço urbano

As estratégias discursivas do planejamento neoliberal
O planejamento urbano neoliberal pode ser compreendido como um projeto de cidade ligado à apropriação dos espaços urbanos pelos processos de acumulação oriundos de grandes empresas, ocasionando fortes ataques ao exercício da cidadania e à efetivação do bem viver
Luiz Eduardo Neves dos Santos/Le Monde Diplomatique 

O urbano – e sua expressão concreta, a cidade – é produto das contradições do sistema capitalista, portanto não deve ser considerado como apenas um amontoado de objetos técnicos e edificações com suas respectivas funcionalidades; é mais que isto, é a expressão das relações sociais, materialização político-territorial que sustenta a produção e a reprodução do capital. Dito de outra forma, é uma reunião de processos e dinâmicas econômicas, políticas e culturais que potencializa a mercantilização das interações sociais e dos processos de subjetivação ao mesmo tempo em que enseja a criação da obra e sua singularidade.

O fenômeno da urbanização moderna é um processo que não pode ser entendido fora da Geografia do capitalismo, seja na sua fase comercial, industrial ou monopolista-financeira. O desenvolvimento das cidades e sua consequente urbanização só podem ser compreendidos dentro de uma teoria social do espaço e do desenvolvimento desigual e contraditório do capitalismo. 

A urbanização se manifesta como processo espaço-temporal de múltiplas escalas, no qual as ações sociais interagem permanentemente com a estruturação territorial expressa pelo conjunto de objetos técnicos, seja por meio das necessidades ilimitadas criadas pela vida urbana através do consumo, pelos fluxos presentes no interior da divisão interna do trabalho em cada aglomeração, e/ou pelos diversos usos do território, condicionados, promovidos e determinados por agentes variados. Nessa perspectiva, a urbanização está diretamente ligada ao conceito espacial de território usado – prenhe de tensões, formas de dominação e relações d e poder –, que abriga as ações passadas, já cristalizadas nos objetos e normas, e as ações presentes, as que se realizam diante de nossos olhos. O uso do território é realizado por todos os tipos de agentes, sendo, portanto, uma totalidade partida em duas matrizes: de um lado a materialidade, representada pelas configurações territoriais e, por outro, as ações, constituídas por relações sociais e decisões políticas.

O planejamento urbano surge, num primeiro momento, como resposta às transformações da sociedade industrial do século XIX na Europa, para tentar solucionar os problemas resultantes da expansão das cidades, uma vez que, naquele contexto, começavam a ser frequentes o grande adensamento populacional, as revoltas urbanas, a miséria, as epidemias, a violência e os conflitos de classe. Por isso havia necessidade da intervenção estatal no processo de ordenamento socioespacial, construção de grandes avenidas para circulação de ar, desenvolvimento dos transportes, provisão de habitações populares, criação de frentes de trabalho, como também na promoção de políticas sociais. No século XX, o planejamento urbano enquanto ferramenta estatal serve como resposta à intensa urbanização caótica em países da periferia do capitalismo, mas suas experiências se materializam de modo a reforçar e reproduzir desigualdades nos espaços urbanos.

O planejamento urbano neoliberal, chamado também de estratégico, pode ser compreendido como um projeto de cidade ligado à apropriação dos espaços urbanos pelos processos de acumulação oriundos de grandes empresas, ocasionando fortes ataques ao exercício da cidadania e à efetivação do bem viver. Isso inclui uma lógica econômica voltada à obtenção irrestrita do mais-valor pela especulação imobiliária, programas de gentrificação e higienização de territórios, aprofundamento da economia imaterial por meio de serviços avançados como a renda da terra, processos de deslocamento forçado e desterritorialização, segregação socioespacial, espoliação urbana, dentre outros. O Estado, enquanto classe social que representa os interesses da elite econômica, é peça fundamental nisso, pois o neoliberalismo, como aponta Pierre Dardot e Christian Laval, constitui uma forma de organização de governo e de uso da estrutura de poder institucionalizada, uma racionalidade que também afeta e molda as subjetividades dos governados.

Pelo exposto, é possível identificar estratégias discursivas por parte do Estado e dos agentes econômicos para justificar toda uma sorte de investimentos nos tecidos urbanos, algo muitíssimo rentável para seus negócios. Por isso a dimensão simbólica do fato social é uma questão central quando se trata de usos específicos realizados nos centros urbanos, pois a vida na urbe envolve também uma rede de significados, valores, crenças e subjetividades que são, amiúde, transformadas, reinventadas e produzidas por meio da relação indissociável entre objetos e ações, entre tecnosfera e psicosfera. A identificação dessas estratégias discursivas é um passo importante para propor novas formas de transformar cidades em lugares que Michael Hardt e Antonio Negri chamaram de bem-estar comum.

primeira estratégia discursiva do planejamento urbano neoliberal é a do saber técnico, competente e especializado. Michel Foucault chamou de função enunciativa o discurso que se realiza sob certas condições e regras. A função enunciativa existe na medida em que alguém fala sob uma certa condição de verdade, com autorização e um certo status para fazê-lo; ela existe ainda quando há posições de sujeito e se fala a partir de um lugar institucional determinado, ou seja, nos espaços de poder se “obtém” um discurso, cuja função é legitimar e/ou funcionalizar a prática discursiva, mas em um dado momento histórico específico.

Isso se materializa no Brasil em diversos municípios e cidades que elaboram suas leis urbanas, qual seja, planos diretores e leis de zoneamento, uso, parcelamento e ocupação do solo. Por mais que essas leis sejam elaboradas em processos ditos participativos, os intelectuais orgânicos dos institutos e outros órgãos de planejamento enaltecem seus próprios feitos e se orgulham das proposições que fazem, se utilizando de expressões técnicas do urbanismo, mas que muitas vezes ignoram as demandas de milhares de pessoas que sobrevivem em péssimas condições nos centros urbanos. O discurso técnico/especializado não pode ser pensado sem que se leve em consideração as questões de poder que perpassam o contexto social em que circula. Para Foucault, “saber e poder são exatamente correspondentes, correlativos, superpostos, não pode haver saber sem poder”. Isso aproxima-se também do que a filósofa Marilena Chauí denominou de ideologia da competência, um discurso proferido pelo especialista, que ocupa lugar de destaque nas organizações e hierarquias políticas e sociais.

Tal discurso técnico pode ser visto em cidades como São Paulo no que diz respeito às Operações Urbanas Consorciadas e a valorização do solo urbano em direção à marginal do Rio Pinheiros e nos territórios adjacentes à Avenida Rebouças, possíveis em razão das mudanças nas leis urbanas idealizadas por uma elite técnica estatal que responde aos interesses financeiros e imobiliários. Valorizam os espaços da racionalidade técnica, caracterizados pela presença do capital corporativo, do circuito superior da economia urbana, enquanto os espaços periféricos da metrópole nacional são desprovidos de políticas urbanas inclusivas para seus habitantes. Em São Luís, capital do Maranhão, não é diferente. Seus planejadores, quando do processo de revisão do Plano Diretor mais re cente, aprovado em 2023, valorizaram os méritos da equipe técnica do Instituto da Cidade (Incid) no que se refere aos mapas de Macrozoneamento Urbano e Ambiental e também aos instrumentos urbanísticos na lei, dispositivos que nunca foram utilizados no município para dirimir desigualdades, coisa aliás que acontece em outras metrópoles brasileiras.

segunda estratégia discursiva é a da questão desenvolvimentista e da modernização. Presente com bastante frequência na grande mídia, tal discurso na realidade é o da ideologia capitalista do desenvolvimento – baseada numa retórica de crescimento econômico tantas vezes importada – que seria capaz de produzir bem-estar social e trazer prosperidade para territórios diversos, como se fosse uma receita global única, mas que esconde interesses de acumulação, muitas vezes alheios aos modos de vida locais.

Há um exemplo emblemático em São Luís que se relaciona com a revisão de seu Plano Diretor. Em julho de 2018, a empresa que administra o Porto São Luís – um mega Terminal de Uso Privado a ser construído no município – lançou um vídeo em seu canal no YouTube que repercutiu fortemente na mídia local, porque nele há todos os detalhes dos investimentos que seriam aplicados na cidade. O presidente da Federação das Indústrias do Estado do Maranhão (FIEMA), Edilson Baldez, é um dos que expõe sua opinião na peça publicitária: “A classe empresarial do Maranhão se sente, além de motivada, honrada com a instalação desse novo empreendimento, o Porto São Luís, que vai, além de trazer benefícios para facilitar o escoamento da produção do nosso Estado, contri buir decisivamente para o desenvolvimento do nosso corredor centro-norte”.

Tal discurso, proveniente tanto dos agentes econômicos como do poder público, demonstra o grande júbilo do empresariado local com os investimentos do porto e reforça uma ideologia desenvolvimentista de que tal empreendimento trará benefícios de crescimento econômico ao Maranhão, algo impregnado no imaginário capitalista e de sua irracionalidade essencial, qual seja a de encarar o crescimento da produção como se fosse um fim e não um meio. Em Porto Alegre, o prefeito Sebastião Melo já afirmou que a cidade é uma grande imobiliária, em alusão aos investimentos de construção civil na capital gaúcha. É uma ideologia hegemônica capturada pelos governos com intenções de autopromoção, amiúde, com fins eleitoreiros. Dessa forma, a reestruturação territorial, feita via planej amento urbano, também se guia por ordens globais, numa trama que mistura elementos simbólico-discursivos e expressões materiais realizadas no lugar, onde o mundo é percebido empiricamente.

Os discursos do presidente da Fiema e do prefeito de Porto Alegre, amplamente disseminados entre os setores corporativos e na grande mídia, são aqueles presentes na ideia colocada por Milton Santos de que “essas empresas são apresentadas como salvadoras dos lugares, apontadas como credoras de reconhecimento pelos seus aportes de emprego e modernidade. Daí a crença de sua indispensabilidade”, o que na realidade configura uma estratégia ideológica de dominação territorial com objetivos de alta produtividade e de lucratividade.

terceira estratégia discursiva do planejamento neoliberal é a do espetáculo. Os usos do território também dependem das motivações oriundas dos discursos de representação do espaço, elas revelam significações de um projeto de cidade. Como aponta Guy Debord, em sua obra mais famosa, “tudo o que era diretamente vivido, se esvai na fumaça da representação […] sob todas as formas particulares de informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante”. A cidade precisa ser vendida, para isso se formulam discursos sobre ela no interior de uma representação, que por vezes, esconde a realidade de um determinado território ou cidade, exemplos não faltam. Sa ntiago no Chile é um desses exemplos, cidade conhecida por sua riqueza e beleza, mas que é altamente segregada e higienizada em sua porção turística e abastada, capital de um país que possui um índice elevado de desigualdade social na América Latina. Curitiba é outro exemplo, conhecida como “cidade-modelo”, “cidade sustentável”, “cidade-sorriso”, com seu Jardim Botânico, sua Ópera de Arame e sua Rua 24 Horas, abriga, segundo o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba, 210 favelas onde vivem 180 mil pessoas.

No caso de São Luís, a força discursiva de cidade histórica, Patrimônio da Humanidade, é acrescida, para fins mercantis, a uma suposta e irrestrita vocação de cidade portuária. Falas públicas na mídia, em audiências e seminários, são palavras que formam um discurso sobre São Luís, evocando uma aptidão de uma grande porta de saída de commodities para o mercado mundial. São discursos e representações ordenadas a partir de uma linguagem visual e verbal. Dessa forma, as intervenções espaciais são discursos em ação, expressões materiais de uma concepção de cidade pela midiatização que as cerca, tornadas parte da imagem da cidade.

A estratégia discursiva dos representantes intelectuais dos empresários locais para a instalação do mega empreendimento portuário em São Luís foi a de evocar o exemplo de Singapura, uma Cidade-Estado situada em uma ilha no extremo sul da península malaia, muito semelhante em forma, extensão e clima com a ilha do Maranhão. Singapura abriga a maior concentração de bilionários por quilômetro quadrado do mundo, o segundo maior porto de contêineres e o quarto local financeiro, atrás de Londres, Nova York e Hong Kong.

O modelo de Singapura possui uma força considerável, é um canto da sereia, discurso que objetiva na realidade vender porções específicas do território ludovicense para grandes grupos econômicos que não pensam no desenvolvimento das populações locais, mas tão somente em auferir lucros, por isso se aliam aos agentes estatais para que seus negócios prosperem. Assim, tentam, a todo custo, passar por cima de comunidades que estejam em seus caminhos, como aconteceu no território do Cajueiro, produzindo o que Saskia Sassen denominou de histórias aceleradas e geografias da destruição.

Ligada a essas três estratégias, formas simbólicas formuladas no interior das classes econômica e política, se encontra a quarta estratégia, o discurso do consenso, um pacto social em que todos e todas devem apoiar. O chamado ao consenso, a unificação das forças sociais em torno de um mesmo projeto redentor, transforma-se em convocação das pessoas para que se tornem espectadoras e consumidoras do espaço renovado; instrumental, necessário à nova fase do capitalismo. A cidade, por meio das imagens, é oferecida agora como espetáculo do capital vitorioso. Não à toa, o prefeito reeleito, Eduardo Braide, falou em “Cidade Inteligente” para se referir à São Luís. Em recente conversa com representantes da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), o gestor disse: “a Prefeitu ra de São Luís está de portas abertas para todas as boas parcerias que possam melhorar a qualidade de vida da nossa população e fazer da capital uma cidade inteligente, sustentável e humana”. Um discurso que objetiva unificar a sociedade em torno de um projeto de cidade ideal, mas que na prática não se realiza, a não ser por meio da criação de imagens pelo marketing e pela publicidade.

O discurso do planejamento urbano neoliberal no Brasil em São Luís e em outras grandes aglomerações urbanas, intrinsecamente ligado às estratégias discursivas do poder econômico e político, é sustentado por essa ideia de consenso, que ajuda a “construir uma história através de uma práxis invertida”, como na expressão de Milton Santos.

Por isso é tão necessário compreender os sentidos dos discursos do saber técnico, do desenvolvimento, do espetáculo e do consenso e, quando estes não bastam, quando encontram barreiras, se observa nitidamente a instalação do que David Harvey chamou de ajustes espaciais, que permitem a criação de condições para uma hiper-acumulação de capital em lugares específicos, gerando desordem e caos, como a expulsão de habitantes locais de seus territórios, degradação socioambiental e consequentemente a produção de uma diferenciação geográfica que concentra e tensiona forças produtivas novas versus a luta pela sobrevivência nos territórios.

Transformar cidades evitando as tragédias das remoções compulsórias, da pobreza urbana, do racismo territorial e da destruição socioambiental passa, inevitavelmente, pela denúncia dessas estratégias discursivas que, na prática, objetivam reforçar desigualdades e atender grandes empresas que usam algumas porções do espaço urbano para fins de acumulação. É preciso afirmar que o planejamento urbano é um processo que deve ocorrer permanentemente na esfera do cotidiano e suas horizontalidades, é uma ação política que supõe mudança de comportamento e de valores perante o lugar e o mundo. A gestão democrática urbana só pode se realizar com a participação das decisões comunitárias, de forma que haja inclusão e cidadania, não através do consumo material apenas, m as, sobretudo, pelo sentimento de pertencimento, que se realiza no lugar, próprio do acontecer solidário e da práxis.

Luiz Eduardo Neves dos Santos é doutor em Geografia pela Universidade Federal do Ceará e professor adjunto IV do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Campus Pinheiro.

Leia sobre capitalismo e espaço urbano https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/07/george-camara-opina_18.html

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