28 outubro 2024

Enio Lins opina

Sobre a obra de Vladimir Carvalho, diria Orson Welles: “É tudo verdade”
Enio Lins   

Com destaque menor que o merecido, a mídia nacional noticiou a morte, no dia 24 deste outubro, de um dos maiores documentaristas do cinema brasileiro. Vladimir Carvalho encerrou sua vigorosa participação, deixando um importante legado em, pelo menos, duas dúzias de filmes devidamente catalogados.

FILMOGRAFIA PRECIOSA

Vladimir Carvalho nasceu em Itabaiana, no agreste paraibano, em 1935, e morreu em Brasília, sua cidade do coração. Viveu também na Bahia, onde conviveu com os jovens Caetano Veloso, Torquato Neto e Gilberto Gil. Iniciou-se no cinema como assistente de Eduardo Coutinho no antológico “Cabra Marcado para Morrer”, filme sobre o assassinato, em 1962, do agricultor João Pedro Teixeira, fundador da primeira Liga Camponesa na Paraíba. Seu primeiro grande sucesso foi “O País de São Saruê”, documentário realizado entre 1966 e 1970, e censurado pelo regime militar em 1971. Sua filmografia lista 24 títulos, produzidos entre 1962 e 2011, iniciando com “Romeiros da Guia” e encerrando com “Rock Brasília - Era de Ouro”, onde se inclui “O Evangelho Segundo Teotônio”.

TEOTÔNIO EM FOCO

Produzido em 1983, “O Evangelho Segundo Teotônio” foi lançado no ano seguinte, ainda a tempo de capturar cenas do grande comício pelas “Diretas Já” na Praça da Sé, em São Paulo, em 25 de janeiro de 1984, dois meses depois da morte do Menestrel das Alagoas. É um filme que merece ser consumido sem moderação, pois nele estão contidas informações preciosas sobre um dos períodos mais marcantes da história nacional, numa narração tendo como base o depoimento em viva voz do Senador da Anistia, numa costura onde a visão aguçada do diretor não apenas documenta, mas se posiciona sobre a conjuntura política, as contradições daquele momento, e sobre algumas das principais questões ideológicas do fim de um período autoritário. Sem quaisquer intenções prévias, o filme vai registrando, em tempo real, a evolução do pensamento e da postura de Teotônio, inclusive com seus apelos derradeiros à rebelião popular na América Latina. Considero particularmente interessante a comparação entre a conversa dele com Elza Monnerat (1913/2004) sobre os desaparecidos da Guerrilha do Araguaia, onde ele (plenamente saudável, aos 62 anos) se expressa em solidariedade respeitosa, mas distanciada; e seu último depoimento (com a saúde muito fragilizada, aos 76 anos) onde apela à revolução popular e diz se imaginar aos 20 anos, como um guerrilheiro.

RECORDAÇÕES PESSOAIS

Ouvi muitos relatos sobre Vladimir Carvalho, e as peripécias para a feitura do filme sobre o Senador da Anistia, contados por Téo Vilela (que, com Zé Aprígio, assina a produção), e por Benvau Fon (fotógrafo e assistente de câmera). Mas estive com o grande cineasta apenas uma vez, em Goiânia, onde participávamos de um seminário sobre Cultura, no final dos anos 90. Conversamos um bocado, tomando umas e outras, revisitando as histórias nordestinas. Guardei na lembrança uma pessoa simples, artista brilhante, e muito acessível. Do filme, sempre que reassisto, me tocam as presenças de muitos personagens que já se foram, como o Coronel Jorge do Brejo, merecedor de um filme só para ele e suas estórias fantásticas; o velho vaqueiro Manoel, com quem participei, no início dos anos 80, de reuniões no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Viçosa; de Dona Alice, viúva de Zé do Cavaquinho, sempre presente nos eventos em memória de seu marido; de Benedito Cintra, saudoso e combativo deputado do PCdoB de São Paulo... Saudades, agradecimentos e aplausos para Vladimir Carvalho e sua obra imortal.

Leia também um poema de Drummond https://lucianosiqueira.blogspot.com/search?q=Amor

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