Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha: Uma HQ que tece história, arte e memória
Publicação tem como cerne a prisão de Mujica entre 1972-1985, período em que ele e outros companheiros sobreviveram a condições desumanas
Thiago Modenesi/Vermelho
A novela gráfica Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha (Editora Levoir, 2025), assinada pelo roteirista Matías Castro e pelo ilustrador Leo Trinidad, é muito mais que uma simples biografia transposta para o formato de história em quadrinhos. É uma obra-prima que entrelaça rigor histórico, invenção narrativa e profundidade visual para explorar a trajetória do ex-presidente uruguaio, do início do seu engajamento político, passando por sua militância nos Tupamaros até os anos de prisão durante a ditadura. O que a torna única é a forma como os autores se inserem na narrativa, o uso estratégico de cores e a riqueza de detalhes que reconstroem um período crucial da América Latina.
A HQ mergulha no contexto do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MLN-T), grupo guerrilheiro que combateu a desigualdade e a repressão no Uruguai dos anos 1960-70. Castro e Trinidad não romantizam a luta armada, mostram suas contradições, derrotas e o preço humano da resistência. O cerne da narrativa é a prisão de Mujica entre 1972-1985, período em que ele e outros companheiros sobreviveram a condições desumanas, com celas subterrâneas, tortura e isolamento.
É aqui que a riqueza de detalhes de Trinidad brilha com cenários minuciosos. Desde as ruas de Montevidéu até as masmorras do Punta Carretas, onde ficou preso, cada quadro reconstitui a época com precisão arquitetônica e atmosférica.
Acompanhamos no desenrolar de mais de 200 páginas da HQ a transformação de Mujica — do jovem idealista ao homem marcado pela cela — narrada através de closes que capturam dor, solidão, convicção e resiliência. As “flores” do título surgem como metáforas de esperança em meio ao avanço da violência e perda de liberdade durante a ditadura uruguaia, desenhadas com delicadeza entre grades e paredes rachadas, além de ser uma bela referência ao trabalho de Mujica e sua mãe com as flores, paixão do ex-presidente até sua morte.
Embora não seja algo inédito nos quadrinhos, a presença física de Castro e Trinidad como personagens da HQ é marcante. Eles não são meros narradores, mas investigadores que estudam o Uruguai através de vasta bibliografia e, depois de muita insistência, entrevistam Mujica idoso (quando já não era mais presidente).
Essa camada meta narrativa humaniza o processo criativo, mostrando as dúvidas, as escolhas éticas e o peso de retratar traumas reais dos autores durante toda a HQ. Além de criar diálogos entre passado e presente todo o tempo, enquanto Mujica relembra sua prisão, os autores refletem sobre como representá-la sem banalizar a dor.
O uso de paletas cromáticas distintas é o eixo que estrutura a complexidade temporal e emocional da obra. O sépia/ocre marca o passado histórico de Mujica, da guerrilha até as primeiras prisões e a cor se torna mais escura em alguns momentos. Já o azul traz os autores em pesquisa, discutindo a construção da HQ, vivendo-a sendo feita e participando. As cenas de tortura, celas escuras e sofrimento são marcadas por um desenho mais errático, em tons de amarelo com preto. Essa escolha não é só estética, guia o leitor entre as camadas da história e simboliza estados emocionais. E em várias páginas, há mistura com quadros azuis e ocres presentes.
A HQ é um testemunho gráfico do compromisso dos autores com a história, rica em referências visuais precisas, como uniformes militares, mapas e arquitetura de prisões. Aqui temos um quadrinho como um ato político retratado em riqueza de detalhes e também poético, no qual assistimos como se construiu o Pepe que foi presidente de uma nação, toda sua jornada e luta, seu sofrimento e convicções.
Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha nos traz a história como alicerce, um retrato cru do Uruguai ditatorial e da luta pela democracia. Ressalto uma vez mais a importância da presença dos autores como parte da trama, uma ousadia que nos faz questionar: quem tem o direito de contar esta história?
Matías Castro e Leo Trinidad não apenas homenageiam Mujica, mas recriam a resistência como ato de criação. Cada quadro desenhado na HQ é um manifesto, a beleza persiste mesmo onde a humanidade foi negada. Esta obra é indispensável para entender a América Latina e o poder dos quadrinhos como ferramenta histórica de transformação.
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