Carnaval, carnavais
Luciano Siqueira
Antigamente o carnaval se iniciava aos sábados. Era o sábado de Zé Pereira. Hoje, em muitos lugares, como no Recife e em Olinda, desde o início de janeiro a folia ocupa as ruas e invade os salões, em prévias animadas e concorridas. De modo que hoje é quinta feira de carnaval — a primeira, porque a outra quinta, pós-quarta-feira de cinzas, também será de carnaval, já que, cá na província, a festança irá mesmo até o domingo subseqüente.
Não há, no Brasil, um carnaval único, homogêneo, uniforme. Há carnavais. Distintos na duração, na intensidade com que arrebata multidões, na variedade de ritmos e cores, no caráter mais ou menos democrático.
O carnaval de Pernambuco é ímpar. A começar pela tradição, palmilhada por uma história guerreira. Pois foi com muita luta que os pernambucanos, recifenses em particular, conquistaram o direito de ganhar as ruas e fazer a folia - conforme nos ensina, dentre outros, a pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco Rita de Cássia Barbosa de Araújo, autora do belíssimo artigo “Carnaval do Recife: a alegria guerreira” (revista Estudos Avançados – USP, abril de 1997).
No final do século XIX e início do século XX, só às elites era reservado esse direito — que desfilava suas alegorias e clubes de máscaras, cabendo à ralé apenas o papel de expectadora. E foi enfrentando proibição legal e muita repressão policial que os trabalhadores, a gente pobre da cidade, literalmente abriram alas e puderam brincar. Daí a natural associação entre diversas agremiações carnavalescas e a categoria profissional dos seus integrantes, revelando traços de união entre a luta por direitos corporativos e a pugna pela liberdade de participar dos folguedos. Vassourinhas, Pás Douradas, Lavadeiras, Lenhadores e tantos outros surgiram dessa simbiose lúdico-combativa.
Provavelmente aí se encontram as raízes do caráter absolutamente democrático do carnaval que aqui se realiza. No Recife, em Olinda, nas demais cidades litorâneas e interioranas, o pernambucano cai no frevo ou se deixa envolver pelo batuque eletrizante do maracatu, livre e espontaneamente, nas praças e nas ruas. Não precisa pagar.
Aqui certamente não vingaria um carnaval argentário como o do Rio de Janeiro, realizado no Sambódromo, do qual o povo foi afastado (como se queixou certz vez Oscar Niemeyer em entrevista ao Jornal do Brasil) pela discriminação econômica. Nem se poderia imaginar o Elefante de Olinda ou Pitombeira dos Quatro Cantos protegidos por cordões de isolamento e impondo a compra daquela espécie de bata que se vê em Salvador. A massa "freveria" de novo e iria à guerra pelo sagrado direito de viver suas fantasias, dores, sonhos, amores, tristezas, esperanças e alegrias no ambiente de liberdade conquistado há um século.
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