24 outubro 2013

Na VI Janela Internacional de Cinema

Tatuagem é um filme sério
Marco Albertim, no Vermelho

 
O humor escrachado do Vivencial Diversiones, a ideologia do deboche anárquico em confronto com o padrão de moral nos fins dos anos 70, é reproduzido no filme de Hilton Lacerda - Tatuagem. Sem adesão à zombaria como modelo de militância ou perfil adequado para questionar os valores em declínio nos fins do regime militar.

O propósito de refletir o conflito entre o anarcodeboche e a austeridade fascista, anuncia-se sem rebuços na primeira sequência - o soldado Araújo, "Fininha" (Jesuíta Barbosa) é flagrado nos primeiros minutos do dia, sentado em sua cama no alojamento do quartel, enquanto a tropa ainda dorme; flagrado pela câmara que dá conta de sua sub jetividade homossexual ainda em gestação. O sargento que, súbito, entra no alojamento ordenando aos gritos a formação, tipifica a crença fascista de que a obediência está acima da luz da razão. No roteiro, Hilton Lacerda ainda inclui a tropa em exercício, entoando em vozes uniformes a crença de que o amor à pátria - submissão às leis do regime militar - é superior ao amor em família.

O corte da sequência dá lugar à epifania pagã do Chão de Estrelas - casa de diversões que ressuscita o Vivencial, estandarte do segmento anárquico porra-louca da Olinda já divisando a vinda da democracia formal. A locação é sumamente feliz, na escolha de um vazio abandonado, entre as ruínas de uma fábrica desativada, em Peixinhos. Não podia ser de outro modo, para acentuar a semelhança remota entre o paredão expondo sua carcaça insepulta, e a trupe de humor com fôlego curto, inda que ruidosa, feérica.

A performance de Irandhir Santos encarnando o transformista debochado - Clécio Wanderley - recaptura o desempenho farto de expressões, o mesmo que ele mostra em Zizo, o poeta pirado em Febre do rato, de Claudio Assis. Clécio é casado, tem um filho de treze anos e faz da paixão por "Fininha" o transbordo da inquietação homossexual. A câmara não se intimida nas tomadas em plano médio e por inteiro, sem rebuços na minúcia dos corpos.



O encontro dos dois, fortuito, dá-se porque "Fininha" fora incumbido de entregar a Paulete - Rodrigo Garcia, uma carta de sua irmã, por sua vez namorada de Arlindo Araújo. O detalhe confere dramaticidade à homossexualidade de "Fininha". Se de um lado o roteirista Hilton Lacerda destaca o perfil fascista da caserna, de outro expõe a cultura estreita do núcleo familiar numa cidade do interior. A avó de Arlindo Araújo abomina o comunismo no espectro ainda não sumido do marido já enterrado, e na índole supostamente ateia do neto, por defender a liberdade de crenças, mesmo em contraposição à predominância do catolicismo.

O fascismo nas dependências do quartel se imiscui com a homossexualidade de "Fininha". Expõe a carantonha no soldado Gusmão - Ariclenes Barroso. Gusmão hostiliza o "frango" "Fininha", misturando o preconceito com a atração que sente pela sua vítima.

O conflito entre a trupe e o eixo do domínio militar em declínio, manifesta-se na relação de Clécio e "Fininha", quando o transformista confessa seu inconformismo ao saber que seu affaire toma parte na repressão às manifestações de rua. "Fiz cumprindo ordem", explica "Fininha.

No quartel, o soldado Araújo deixa-se tatuar acima do peito - um coração com o C de Clécio no centro. O plano médio com que a câmara captura a cena, a dor no rosto aflito do tatuado, dão contornos de uma sessão de tortura. Ao mostrar a Clécio o desenho em homenagem ao artista, o ator, chorando, mostra sua performance no cume do personagem.

A conversa de Clécio e Paulete com o censor que dera ordem para o fechamento do Chão de Estrelas, é eloquente na mostra de um regime com os dias de vigência contados. Por fim, a viatura verde-oliva estaciona em frente à casa de diversões; na carroceria, o soldado Gusmão empunhando o fuzil de baioneta calada. O fim trágico é empanado com a adesão de "Fininha" à trupe, em cena rediviva, nu como os outros, cantando um vaudeville elogiando a diversidade de cus para todos os gostos.

O professor Joubert - Sílvio Restiffe - é o poeta filósofo que legitima com a palavra a contraposição entre a moral burguesa e o livre arbítrio da trupe. "O ciúme é o primeiro indício da possessão capitalista", sentencia, professoral, sem ambiguidades de sexo.

Tatuagem é o que há de mais emblemático na VI Janela Internacional de Cinema.

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