Mulher
do detento
Marco Albertim
Não se perdeu no vento o relato de Janine. Ela aproveitou o sopro vindo
do sudeste, sentou-se no calçadão do armazém na beira do cais, convicta de que
a surragem no morim do vestido, tinha tudo a ver com o reboco estropiado das
paredes do armazém. O amarelo sem cor das paredes, nem com o apuro dos olhos
seria restabelecido; só a memória do que fora restituía a elegância sem brilho
da ponte giratória no cais de Santa Rita.
Do mesmo
modo, os desenhos de flores sumidos do morim sem cor do vestido de Janine, a custo
davam vida ao desassossego moreno de suas carnes, quando entrevira a chance de
se ver livre da incômoda virgindade.
O vento
encobriu o choro sem agonia nos seus olhos miúdos; pressionou-os para as
entranhas da memória, onde afoiteza nenhuma tinha o direito de fazer pouco do
que, por opção própria, juntara sem sustos para não perder o culto da vida em
grupo. Ninguém, nem mesmo a coragem fria dos detentos do pavilhão C.
Com as
flores luzidias no morim então novo, ela saiu da cela onde confabulara com Babão.
Pôs o dinheiro acima do bico do peito, entre a carne tenra e a almofada do
sutiã. Dois carcereiros, um em cada pavilhão, abriram a cela do respectivo
corredor. No primeiro, do C, o homem de feição tão amarela quanto a de cada
detento, só olhou-a nos olhos, evitando adivinhar os contornos do corpo baixo,
inda que torneado, mas familiar à inquietação dos dedos de Babão. No segundo,
vizinho ao pátio àquela hora vazio, outro carcereiro tinha a mesma feição.
No corredor
entre as celas de um lado e de outro, os presos enxergaram as ondulações do
corpo de Janine; nenhum teve coragem de acoitar a esperança de, com a pena
reduzida, estender-lhe o incerto e tão cotado pano, proteção que todo preso
miúdo ou parente busca para não sofrer embaraço de bandido sem código de honra,
ou mesmo de polícia sem lugar no catre.
No portão de
saída, antes de cruzá-lo, foi conduzida por policiais femininas a uma sala.
Havia quatro, duas trancaram-se com Janine para a revista de rotina. A mais
velha, com uma infusão de rigor e lascívia nos olhos, apalpou-a nos peitos. A
minúcia dos dedos fez o rastejo de baixo para cima, para precisar a redondez
lobular dos seios. O contato da sequidão da mão da mulher na maciez dura dos
seios de Janine, ela o ignorou com os olhos fixos na imprecisão dos próximos
passos de sua vida.
A outra,
também urdindo bulício nas mãos e autoridade na fronte, apalpou-a sob a parte
de baixo do morim nada encardido. Enxergou, com lubricidade nos olhos sob as
pálpebras pesadas, um chip de celular. A mais velha fez-lhe um gesto, descendo
de cada um dos cantos da boca, o indicador e o dedo polegar. O ricto da
advertência incensou a sala com o espectro de Babão. A cédula de cem reais fora
tateada pela guarda mais velha; sabia de onde viera o dinheiro e inquiriu-a para
compor o ritual da revista.
- É para
comprar as carnes – respondera Janine, não a modo de retruque, mas para
acrescentar à fita.
...
- Alcatra.
Dois quilos.
O açougueiro
reiterou nos olhos a mesma cumplicidade dos carcereiros; sem atentar para os
contornos do corpo de Janine, espreitou-a como a uma freguesa de paga sem
vexame, com dinheiro vindo das entranhas do tráfico. Por conveniência, não quis
saber o seu nome, nunca quisera. Devolveu-lhe o troco com a mesma minúcia de
gesto de quando Janine bacorejara a bufunfa do sutiã.
De volta ao
presídio, entrou na sala para submeter-se à encenação; agora com fastio nas
mãos e preguiça nos olhos. As polícias apalparam-na sorvendo o cheiro da
alcatra tenra. Não quiseram examinar o pacote com a carne. O cheiro de carne
sangrada ocuparia o lugar das vísceras nunca emprenhadas de Janine.
Na cela,
Babão ordenou a Lula que tratasse de moquear a carne na grelha de ferro do
pavimento de cima. Logo, à noite, seria comida a modo de churrasco. Lula
obedeceu, tirando do armário o sal, uma faca e o cominho. Ainda assim, Babão
cuidou de puxar a cortina entre seu catre e o de Lula. A alcatra deixou no
cheiro indícios de sangue. Babão entreteve-se na cumplicidade das carnes vivas
de Janine.
No fim da
tarde, o vento parou de soprar no cais de Santa Rita. À luz do poste, ela
examinou sem vontade a foto de Babão no jornal, morto, um só tiro na moleira.
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