12 abril 2019

Violência policial


Ilustração:Pxeira
Oitenta tiros
Joan Edesson de Oliveira, no portal Vermelho

É possível medir a dor? Será que temos como saber qual é o tamanho da dor ao sermos atingidos por oitenta tiros? 

A impressão que tenho é que a dor é tão grande que não coube naquele carro, que não coube naquela família. A impressão que me dá é que, de tão imensa, a dor transbordou do carro, inundou o Rio e espalhou-se pelo Brasil inteiro. A dor se derrama para além das nossas fronteiras.
Oitenta tiros! Um engano, é a justificativa apresentada.

Oitenta tiros! A única reação do Ministro da Justiça é “lamentável”! O presidente silencia. Seu silêncio ecoa mais alto ainda que os estampidos.

A família chora, os amigos choram. Um país inteiro lamenta, perplexo, sem acreditar direito que isso está acontecendo.

Em que momento mesmo foi que nos perdemos e que largamos nossa humanidade na beira da estrada? Sim, largamos a nossa humanidade, pois não é possível que tamanha barbárie seja obra de humanos. Algum tipo de monstro assumiu uma forma humana, se fez passar por gente e desferiu oitenta tiros. E matou, e riu, e disse que foi apenas um engano.

Em todos os cantos do país aqueles oitenta tiros continuam ecoando. Mataram antes. Matarão depois. Um preto, um pobre, é sempre um suspeito. Um negro pobre em um carro é mais suspeito ainda. Por isso outros homens pobres, pretos, vestindo uma farda, treinados para matar, os executam.

Quando li a notícia sobre os oitenta tiros eu passava pela zona da mata, entre os estados de Pernambuco e Paraíba. Nos dois lados da estrada apenas cana, canaviais a perder de vista, um verde musgo sem fim embriagando os olhos.

Pensei nos homens negros e pobres morrendo naqueles canaviais, escravizados. Pensei nos capitães do mato que os caçavam, se algum ousasse fugir. Pensei nos trabalhadores negros e pobres, libertos, morrendo naqueles canaviais. E nos capitães do mato que os caçavam, se algum ousasse reclamar seus direitos. Pensei nos trabalhadores negros e pobres desse país. E nos homens negros e pobres, fardados, que os matam, todos os dias, em todos os cantos da imensa pátria.

O carro em que viajo passa por uma barreira policial e eu me encolho, como faço sempre, instintivamente, sempre que avisto a polícia. Tenho medo da polícia, não consigo evitar isso. Não sou negro, é verdade. Mas se bem que as balas pareçam ter uma certa predileção, é verdade que hoje elas matam indistintamente quem está do outro lado. Há uma parcela que morre muito mais, mas ninguém está a salvo, ninguém. Nem a mulher agredida em São Paulo, nem o músico morto no Rio de Janeiro, nem a família pernambucana fuzilada em Milagres, no Ceará, há alguns meses.

Os oitenta tiros nos atingem todos os dias. Os oitenta tiros nos matam todos os dias.

Não podemos ficar indiferentes a isso. É preciso, sempre que aconteçam crimes assim, que pensemos: e se fosse eu? Porque essa possibilidade existe, porque na imensa seara de ódio em que o Brasil se tornou, a colheita da dor pode nos atingir a qualquer momento.

Indago se é possível medir a dor, mas vejo que não é isso que importa. Importa mesmo é a nossa indignação, a nossa revolta, é a capacidade de usar isso para reafirmar nossa humanidade e de lutar para que não aconteça mais.

Oitenta tiros não deveriam nos deixar dormir em paz.
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