Camarada Amazonas, presente!
Breve memória do pensamento e do legado de João Amazonas
Renato Rabelo*, www.pcdob.org.br
Quase uma
constância, inúmeras vezes visitava o camarada João Amazonas no primeiro dia do
ano – data do seu nascimento, no ano de 1912. Eu era acompanhado muitas vezes
por Conchita — minha esposa — e recebido por João e Edíria, sua
companheira até a morte, sempre muito simples, afável e afetuosa. Nos serviam
chá e biscoitos e a conversa rolava geralmente durante mais de três horas com
divagações, atualização dos mais variados assuntos, rememorações, até mesmo se
desenhava sortidas abstrações, em um ambiente terno, de prazer e confiança
mútua.
Tive a ventura
de conviver com o camarada João desde maio de 1973, no primeiro encontro,
celebrado entre João Amazonas e Pedro Pomar, pelo PCdoB, e Haroldo Lima e
Renato Rabelo, pela AP num “aparelho” clandestino do Partido, em plena ditadura
militar, no curso da incorporação da Ação Popular Marxista-Leninista ao Partido
Comunista do Brasil. A partir desse desenlace logo me dediquei ao lado de João
na formação de uma retaguarda de apoio à resistência armada no Araguaia. Logo
após, em novas circunstâncias, junto com João Amazonas e Diógenes Arruda
vivemos e atuamos na condição de exilados em Paris, França, durante quase dois
anos.
Na volta ao
Brasil, pós-anistia, no final de 1979, se desenrola um novo ciclo de existência
do PCdoB, começando com a paciente reestruturação do Partido, redemocratização
e início do maior período de legalidade da história do Partido Comunista no
Brasil. João Amazonas não viveu para ver a vitória da campanha presidencial
consumada no final de 2002, com o que, desde os primórdios a partir de 1989,
ele contribuiu substancialmente para esse resultado.
Minha vivência com Amazonas
Tornou-se
para mim uma fortuna essa larga vivência de quase 30 anos, ao lado e na luta
com esse eminente dirigente comunista, arguto elaborador político e teórico,
ideólogo e construtor protagonista do Partido Comunista desde a década de 1940.
Essa trajetória foi marcante na minha formação política, teórica, metodológica,
ideológica, descortinando para mim novos horizontes, forjando as condições
necessárias para galgar o maior desafio da minha experiencia política e humana,
assumir a presidência de um partido lastreado de insignes dirigentes, com um
rastro de heróis e mártires, na comunhão do grande desiderato histórico: abrir
a senda para edificação de uma nova sociedade pós-capitalista, socialista, até
a “utopia” marxista, o comunismo. Deixando em mim não a resignação, mas a
convicção: O tempo apreendido com o pensamento avançado, levado à
sinergia da força motriz de grandes contingentes dos que trabalham, ainda dará
conta à história de profundas transformações, disruptivas, revolucionárias.
A prática e
o pensamento de João Amazonas puseram-me a lógica da procura da compreensão do todo, de uma situação concreta – um
simples acontecimento, ou uma época. Assim intentar levar à cabo um
conhecimento profundo, sem apenas reduzi-lo à aparência do imediatismo,
contextualizando num longo prazo. Ou seja, a tentativa da elaboração que possa
realizar a sistematização histórica e teórica. Para João tudo vindo do humano,
da história, do acontecido concreto ou imaginário, deve passar pelo nosso olhar
e crivo, transitando do espontâneo ao consciente, a fim de que possa permitir
uma resposta, uma solução, um discernimento lógico objetivo.
O rico e extenso legado de Amazonas
A práxis
constante de longa atividade política nas diversas circunstâncias de tempo e
lugar, do seu incessante estudo, permitiu a João, de forma persistente, colocar
o Partido no curso dos acontecimentos políticos, permitindo então, uma prática
que fosse a base para definições sistêmicas, estratégica, tática e
programática. Nesse sentido, o pensamento de Lênin tinha-lhe sido uma
referência maior. Ele conceituava a última grande obra de Lênin, Esquerdismo, doença infantil do comunismo (1920),
como uma “verdadeira enciclopédia da estratégia e da tática”. E afirmava: “É
uma obra tão densa, baseada em gigantesca experiência revolucionária que, em
dezenas de leituras feitas, sempre se descobre algo novo”. Tornou-se clássica
sua caracterização de que a tática deve ser “ampla, combativa e flexível” e, de
que, a luta dos trabalhadores para conseguir êxito deve seguir uma relação
dialética: “ampliar para radicalizar, radicalizar para ampliar”. Assim,
querer radicalizar sem acumular e ampliar forças políticas e sociais, nos leva
ao isolamento e à derrota. E já diante da radicalização é preciso sempre mais
ampliação de forças para avançar.
João
Amazonas na sua rica experiência adquiriu agudo censo tático em função do
objetivo estratégico e, deste, não se afastar. Em correta relação entre
estratégia e tática. Ele nunca teve ilusões do papel antinacional e
antidemocrático das classes dominantes conservadoras no Brasil. E nunca perdeu
de vista o alvo de investida principal, o adversário a ser isolado e derrotado.
Na campanha pelas Diretas Já (1984-1985),
a militância comunista participou de forma consequente e intensa. Quando a
Emenda que devolvia aos brasileiros o direito de votar para presidente da
República foi derrotada no Congresso Nacional, com a indicação de Amazonas, o
PCdoB defendeu naquele momento, que o foco da luta se transferia para o próprio
Colégio Eleitoral, instituição do regime militar. Este tornava-se o meio viável
naquela situação dada, porquanto podia formar pela primeira vez uma maioria no
dito Colégio, pelo qual se poderia vencer a ditadura, abrindo o caminho para
conquistas maiores. Manter nossa ausência no Colégio Eleitoral ainda permitiria
a sobrevida do regime ditatorial.
E adiante,
após 3 derrotas consecutivas de Lula à presidência da República, a proposta
defendida por Amazonas de que a esquerda sozinha, dificilmente ganharia as
eleições presidenciais e, menos ainda, poderia governar o país, em face da
estrutura da correlação de forças existente, demonstrava ser correta. Disso e
das próprias lições da derrota levaram o PT estender a aliança, permitindo o
alcance da primeira vitória de Lula, em 2002. O núcleo da aliança foi formado
com o Partido Liberal contando com José Alencar, e o segundo turno eleitoral
garantiu a vitória final, com aliança mais alargada ao centro-direita do
espectro político de então. De forma indubitável, explícita ou implícita, três
chaves conceituais do arsenal leninista, assumidas na orientação do PCdoB,
instruídas por Amazonas, justificam e fundamentam a aplicação dessas
orientações adotadas: “análise concreta da situação concreta”; “a essência da
tática é a correlação de forças”. “Para o êxito da luta revolucionária é
imperativo a celebração das alianças”. O que conta é a influência que o aliado
tenha sobre um setor determinado da sociedade, ou melhor: o seu peso quanto a
possibilidade de desequilibrar a correlação de forças existente. Podendo ser um
aliado “temporário” e “vacilante”.
Amazonas
também deixou importante contribuição, na qual se empenhou vivamente, acerca do
período de extinção do socialismo na URSS e no Leste europeu. Sob sua direção,
a realização do significativo VIII Congresso do PCdoB, em 1992, trouxe à luz do
dia o pano de fundo da debacle: sem o desenvolvimento da teoria, os problemas
estruturais postos pelo desafio de construir o socialismo não puderam ser
enfrentados de forma condizente com a exigência histórica daquele período. E
foi adiante, o seu estudo desenvolve a elaboração teórica da fase objetiva de
transição do capitalismo ao socialismo, no seu brilhante trabalho, Capitalismo de Estado na transição para o
socialismo: notável contribuição de Lênin à teoria revolucionária do progresso
social. A fundamentação central defendida por João Amazonas nessa obra
foi um começo que permitiu o conhecimento mais consistente, antes “adormecido”,
do processo contraditório na formação econômico-social, sob a condução do novo
poder estatal, com etapas determinadas, na transição socialista. Hoje, podemos
compreender que foi uma visão prenunciadora de Amazonas, refletida no estudo e
pesquisa que estamos realizando na atualidade, que enfoca o conceito de “nova
formação econômico-social”, e os seus fundamentos de uma “ressignificação da
transição socialista”, no contexto da nova luta do socialismo contemporâneo na
China, no Vietnã e em Cuba.
É extenso e
rico o legado político e teórico deixado por João Amazonas. Muito poderia ainda
destacar. Por exemplo, a respeito da sua clarividência sobre o papel e o lugar
da organização partidária dos comunistas na luta política e ideológica,
instrumento insubstituível para a conquista do poder político estatal e o êxito
revolucionário. A consequência dessa concepção traduzida em como cuidar sempre
e melhor do partido – atenção incessante pronunciada e estimulada por ele. A
sua luta e seu desvelo pela aplicação do Programa do Partido. O papel crescente
das mulheres e da juventude na formação da força motriz empenhada nas profundas
transformações sociais e a relação primordial do Partido com as massas
trabalhadoras, a prioridade da formação marxista-leninista dos quadros e
militantes … É extensa a lista da sua dedicação e contribuição.
Neste dia
em que comemoramos o nascimento de João Amazonas enaltecemos a sua gloriosa e
saudosa memória juntos com nossa militância e nosso Partido.
*Renato Rabelo é membro do Comitê Central do PCdoB,
presidente da Fundação Maurício Grabois. Texto publicado originalmente no Blog
do Renato
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