03 novembro 2020

Literatura e resistência

Romance de verdade, para D.H. Lawrence, é o que contradiz o autor e suas vontades

Bernardo Carvalho, Folha de S. Paulo

 

Enquanto o país derrete, sucateado pela pior canalha, falar de literatura pode parecer faltar com o sentido de urgência, mas é exatamente o oposto.

Uma seleção recente dos ensaios de D.H. Lawrence (“The Bad Side of Books”, o lado mau dos livros), editada por Geoff Dyer e publicada pela New York Review of Books, põe a literatura —e, mais especificamente, o romance— no centro nevrálgico do que é ou pode ser uma sociedade livre. Uma questão que nos diz respeito diretamente, embora muita gente prefira tratá-la como perfumaria.

Há um projeto em curso no país, para o qual a liberdade é a maior inimiga. E isso em nome de uma impostura sustentada por um modelo de autoridade que tem sua realização máxima na infiltração oportunista do Estado laico e democrático pelo mais tacanho e truculento ideal militar e religioso. Não se trata de uma questão meramente filosófica ou existencial, mas dos direitos e do futuro concreto dos brasileiros.

É engraçado ouvir gente que reclama de discriminação religiosa defender, assentada nos píncaros do poder, um projeto de poder (porque não tem outro nome) cujo fim é enquadrar tudo e todos os que não correspondem a seu modelo de moralidade.

Que tipo de sentimento devo nutrir por quem é capaz de tudo para impor aos outros sua hegemonia moral e comportamental, trabalhando contra leis e direitos conquistados? Alguma vez interferimos na maneira como vivem? No que acreditam? Quem está discriminando quem?

De origem operária, D.H. Lawrence (1885-1930) foi perseguido e vilipendiado por obscenidade e imoralidade, entre outras coisas. “O Amante de Lady Chatterley”, seu romance mais conhecido, escrito em 1928 e proscrito como pornografia, só foi publicado na Inglaterra em 1960.

Sua reputação teve altos e baixos, e não apenas por conta do moralismo da hora. Uma busca rápida na internet levará, para além da crítica feminista dos anos 1970, a associá-lo até ao nazifascismoJames Joyce o considerava um péssimo escritor, talvez em retribuição às palavras que o autor de “Mulheres Apaixonadas” reservara à sua “total falta de espontaneidade”.

Incorporando aos ensaios a contradição provocadora que tanto prezava no romance, Lawrence é implacável em relação aos autores: “Deixe-me ouvir o que diz o romance. Quanto ao romancista, trata-se de um mentiroso babão”.

O romance de verdade, para ele, é o que contradiz o autor, suas ideias e vontades, estabelecendo uma relação sempre nova com o mundo. Nada está fixo por princípio ou antecedência. Uma ideia de difícil compreensão, ainda mais hoje, e não só para o academicista ou o moralista de plantão, agarrados a normas que são a antítese da liberdade e portanto, segundo Lawrence, também do romance: “O romance é a forma mais elevada já atingida pela expressão humana. Por quê? Porque ele é incapaz de dizer o absoluto”.

Escaldado pela sanha moralista, Lawrence revida com o exemplo de “Anna Kariênina”, contra Tolstói: “Vrónsky peca, mas a consumação do pecado é desejada com devoção. O romance torna isso óbvio, apesar do velho Tolstói”.

O que seria dos livros de Tolstói sem o pecado? “Nada que o homem tenha pensado ou sentido ou conhecido, nem mesmo o próprio homem ou o deus do homem, é fixo [...]. Tudo se move. [...] Não há absoluto nem absolvição para o homem. [...] Aí está a grandeza do romance. Ele não deixará ninguém contar mentiras didáticas.”

O romance é, assim, a expressão de uma dinâmica que contradiz tanto a autoimagem do autor como a do leitor. Por isso ele fere e incomoda. O romance não é o eu nem o outro, é o meio do caminho, o movimento, o balanço, a relação. Da mesma forma que os girassóis de Van Gogh não são nem o retrato de girassóis nem o do pintor, mas o resultado de uma relação única, nova, intangível e instantânea entre os dois.

No romance “tudo é verdadeiro no seu tempo, lugar e circunstância; e tudo é falso fora do seu lugar, tempo e circunstância. [...] A moral no romance é a instabilidade [...]. Faz parte da enganação de praxe dizer que a arte é imoral. [...] Imoral é o absoluto!”.

Expressão máxima dessa imoralidade entre nós é a fórmula adotada pelo atual governo para encobrir o real, contra a possibilidade de novas relações entre o homem e o mundo, contra o debate, as diferenças e as contradições: Deus acima de tudo, o Brasil acima de todos. Que deus? Qual Brasil? É uma inversão expressamente concebida contra a visão humanista, “romanesca”, de um país de todos. Nos termos de Lawrence, é a imoralidade do absoluto contra a vida.

A leitura nossa de cada dia https://bit.ly/310BQuN 

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