Romance de verdade, para D.H. Lawrence, é o que contradiz o autor e suas vontades
Bernardo Carvalho, Folha
de S. Paulo
Enquanto
o país derrete, sucateado pela pior canalha, falar de literatura pode parecer
faltar com o sentido de urgência, mas é exatamente o oposto.
Uma
seleção recente dos ensaios de D.H.
Lawrence (“The
Bad Side of Books”, o lado mau dos livros), editada por Geoff Dyer e publicada
pela New York Review of Books, põe a literatura —e, mais especificamente, o
romance— no centro nevrálgico do que é ou pode ser uma sociedade livre. Uma
questão que nos diz respeito diretamente, embora muita gente prefira tratá-la
como perfumaria.
Há
um projeto em curso no país, para o qual a liberdade é a maior inimiga. E isso
em nome de uma impostura sustentada por um modelo de autoridade que tem sua
realização máxima na infiltração oportunista do Estado laico e democrático pelo
mais tacanho e truculento ideal militar e religioso. Não se trata de uma
questão meramente filosófica ou existencial, mas dos direitos e do futuro
concreto dos brasileiros.
É
engraçado ouvir gente que reclama de discriminação
religiosa defender,
assentada nos píncaros do poder, um projeto de poder (porque não tem outro
nome) cujo fim é enquadrar tudo e todos os que não correspondem a seu modelo de
moralidade.
Que
tipo de sentimento devo nutrir por quem é capaz de tudo para impor aos outros
sua hegemonia moral e comportamental, trabalhando contra leis e direitos
conquistados? Alguma vez interferimos na maneira como vivem? No que acreditam?
Quem está discriminando quem?
De
origem operária, D.H. Lawrence (1885-1930) foi perseguido e vilipendiado por
obscenidade e imoralidade, entre outras coisas. “O Amante
de Lady Chatterley”,
seu romance mais conhecido, escrito em 1928 e proscrito como pornografia, só
foi publicado na Inglaterra em 1960.
Sua
reputação teve altos e baixos, e não apenas por conta do moralismo da hora. Uma
busca rápida na internet levará, para além da crítica feminista dos anos 1970,
a associá-lo até ao nazifascismo. James
Joyce o
considerava um péssimo escritor, talvez em retribuição às palavras que o autor
de “Mulheres Apaixonadas” reservara à sua “total falta de espontaneidade”.
Incorporando
aos ensaios a contradição provocadora que tanto prezava no romance, Lawrence é
implacável em relação aos autores: “Deixe-me ouvir o que diz o romance. Quanto
ao romancista, trata-se de um mentiroso babão”.
O
romance de verdade, para ele, é o que contradiz o autor, suas ideias e
vontades, estabelecendo uma relação sempre nova com o mundo. Nada está fixo por
princípio ou antecedência. Uma ideia de difícil compreensão, ainda mais hoje, e
não só para o academicista ou o moralista de plantão, agarrados a normas que
são a antítese da liberdade e portanto, segundo Lawrence, também do romance: “O
romance é a forma mais elevada já atingida pela expressão humana. Por quê?
Porque ele é incapaz de dizer o absoluto”.
Escaldado
pela sanha moralista, Lawrence revida com o exemplo de “Anna
Kariênina”,
contra Tolstói: “Vrónsky peca, mas a consumação do pecado é desejada com
devoção. O romance torna isso óbvio, apesar do velho Tolstói”.
O
que seria dos livros de
Tolstói sem
o pecado? “Nada que o homem tenha pensado ou sentido ou conhecido, nem mesmo o
próprio homem ou o deus do homem, é fixo [...]. Tudo se move. [...] Não há
absoluto nem absolvição para o homem. [...] Aí está a grandeza do romance. Ele
não deixará ninguém contar mentiras didáticas.”
O
romance é, assim, a expressão de uma dinâmica que contradiz tanto a autoimagem
do autor como a do leitor. Por isso ele fere e incomoda. O romance não é o eu
nem o outro, é o meio do caminho, o movimento, o balanço, a relação. Da mesma
forma que os girassóis de Van Gogh não são nem o
retrato de girassóis nem o do pintor, mas o resultado de uma relação única,
nova, intangível e instantânea entre os dois.
No
romance “tudo é verdadeiro no seu tempo, lugar e circunstância; e tudo é falso
fora do seu lugar, tempo e circunstância. [...] A moral no romance é a
instabilidade [...]. Faz parte da enganação de praxe dizer que a arte é imoral.
[...] Imoral é o absoluto!”.
Expressão
máxima dessa imoralidade entre nós é a fórmula adotada pelo atual governo para
encobrir o real, contra a possibilidade de novas relações entre o homem e o
mundo, contra o debate, as diferenças e as contradições: Deus acima de tudo, o
Brasil acima de todos. Que deus? Qual Brasil? É uma inversão expressamente
concebida contra a visão humanista, “romanesca”, de um país de todos. Nos
termos de Lawrence, é a imoralidade do absoluto contra a vida.
A leitura
nossa de cada dia https://bit.ly/310BQuN
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