Viúva na praia
Rubem Braga
Ivo viu a uva; eu vi a viúva. Ia passando na praia,
vi a viúva, a viúva na praia me fascinou. Deitei-me na areia, fiquei a
contemplar a viúva.
0 enterro passara sob a minha janela; o morto eu o
conhecera vagamente; no café da esquina. a gente se cumprimentava às vezes,
murmurando “bom dia”; era um homem forte, de cara vermelha; as poucas vezes que
o encontrei com a mulher ele não me cumprimentou, fazia que não me via; e eu
também. Lembro-me de que uma vez perguntei os horas ao garçom, e foi aquele
homem que respondeu; agradeci; este foi nosso maior diálogo. Só ia à praia aos
domingos, mas ia de carro, um “Citroen”, com a mulher, o filho e a barraca,
para outra praia mais longe. A mulher ia às vezes à praia com o menino, em
frente à minha esquina, mas só no verão. Eu passava de longe; sabia quem era,
que era casada, que talvez me conhecesse de vista; eu não a olhava de frente.
A morte do homem foi comentada no café; eu soube,
assim, que ele passara muitos meses doente, sofrera muito, morrera muito magro
e sem cor. Eu não dera por sua falta, nem soubera de sua doença.
E agora estou deitado na areia, vendo a sua viúva.
Deve uma viúva vir à praia? Nossa praia não é nenhuma festa; tem pouca gente;
além disso, vamos supor que ela precise trazer o menino, pois nunca a vi
sozinha na praia. E seu maiô é preto. Não que o tenha comprado por luto; já era
preto. E ela tem, como sempre, um ar decente; não olha para ninguém, a não ser
para o menino, que deve ter uns dois anos.
Se eu fosse casado, e morresse, gostaria de saber
que alguns dias depois minha viúva iria à praia com meu filho — foi isso o que
pensei, vendo a viúva. É bem bonita, a viúva. Não é dessas que chamam a
atenção; é discreta, de curvas discretas, mas certas. Imagino que deve ter 27
anos; talvez menos, talvez mais, até 30. Os cabelos são bem negros; os olhos
são um pouco amendoados, o nariz direito, a boca um pouco dentucinha, só um
pouco; a linha do queixo muito nítida.
Ergueu-se, porque, contra suas ordens, o garoto
voltou a entrar n’água. Se eu fosse casado, e morresse, talvez ficasse um pouco
ressentido ao pensar que, alguns dias depois, um homem — um estranho, que mal
conheço de vista, do café — estaria olhando o corpo de minha mulher na praia.
Mesmo que olhasse sem impertinência, antes de maneira discreta, como que
distraído.
Mas eu não morri; e eu sou o outro homem. E a idéia
de que o defunto ficaria ressentido se acaso imaginasse que eu estaria aqui a
reparar no corpo de sua viúva, essa idéia me faz achá-lo um tolo, embora, a
rigor, eu não possa lhe imputar essa idéia, que é minha. Eu estou vivo, e isso
me dá uma grande superioridade sobre ele.
Vivo! Vivo como esse menino que ri, jogando água no
corpo da mãe que vai buscá-lo. Vivo como essa mulher que pisa a espuma e agora
traz ao colo o garoto já bem crescido. 0 esforço faz-lhe tensos os músculos dos
braços e das coxas; é bela assim, marchando com a sua carga querida.
Agora o garoto fica brincando junto à barraca e é
ela que vai dar um mergulho rápido, para se limpar da areia. Volta. Não, a
viúva não está de luto, a viúva está brilhando de sol, está vestida de água e
de luz. Respira fundo o vento do mar, tão diferente daquele ar triste do quarto
fechado do doente, em que viveu meses. Vendo seu homem se finar; vendo-o decair
de sua glória de homem fortão de cara vermelha e de seu império de homem da
mulher e pai do filho, vendo-o fraco e lamentável, impertinente e lamurioso como
um menino, às vezes até ridículo, às vezes até nojento…
Ah, não quero pensar nisso. Respiro também
profundamente o ar limpo e livre. Ondas espoucam ao sol. O sol brilha nos
cabelos e na curva de ombro da viúva. Ela está sentada, quieta, séria, uma perna
estendida, outra em ângulo. 0 sol brilha também em seu joelho. O sol ama a
viúva. Eu vejo a viúva.
[Ilustração: Scott Harding]
Veja
uma dica de leitura: Raimundo Carrero https://bit.ly/3pCHkXY
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