Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim
Rubem Braga
Conhece o vocábulo escardinchar? Qual o feminino de cupim? Qual
o antônimo de póstumo? Como se chama o natural do Cairo?
O leitor que
responder “não sei” a todas estas perguntas não passará provavelmente em
nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial. Alias, se isso pode
servir de algum consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações
deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.
Porque a
verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de Português,
que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de
escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua.
Concordo.
Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido. De
vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte de crônica
anotado, apontando erros de Português. Um deles chegou a me passar um
telegrama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia,
um só erro de Português; acrescentava que eu produzira uma “página de bom
vernáculo, exemplar”. Tive vontade de responder: “Mera coincidência” — mas não
o fiz para não entristecer o homem.
Espero que
uma velhice tranqüila – no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios — me
permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos
abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo
de pulcro? Isto eu sei por acaso: pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma
coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama: a senhora é
pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?).
Alguém já me
escreveu também — que eu sou um escoteiro ao contrário. “Cada dia você parece
que tem de praticar a sua má ação — contra a língua”. Mas acho que isso é
exagero.
Como também é
exagero saber o que quer dizer escardinchar. Já estou mais perto dos cinqüenta
que dos quarenta; vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde
e estou até gordo demais, pensando em meter um regime no organismo — e nunca
soube o que fosse escardinchar. Espero que nunca, na minha vida, tenha
escardinchado ninguém; se o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa
intenção.
Vários
problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim.
Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me
terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual
é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me cumprimentar.
Por que
exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do
estudo da língua portuguesa unia série de alçapões e adivinhas, como essas
histórias que uma pessoa conta para “pegar” as outras? O habitante do Cairo
pode ser cairense, cairei, caireta, cairota ou cairiri — e a única utilidade de
saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas.
Vocês não acham que nossos funcionários públicos já gastam uma parte excessiva
do expediente matando palavras cruzadas da “Última Hora” ou lendo o horóscopo e
as histórias em quadrinhos de “O Globo?”.
No fundo o
que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não
alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, ruas um instrumento de suplício
e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros.
Mas a mim é
que não me escardincham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem
antônimo do póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente — de
Cachoeiro de Itapemirim!
Rio, novembro, 1951
Texto extraído do livro
“Ai de Ti, Copacabana”, Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1960, pág. 197.
A leitura nossa de cada dia https://bit.ly/310BQuN
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