Bolsonaro, a vacina e o mercado
Paulo
Kliass, Carta Maior
A história das relações de Bolsonaro com o a pandemia do coronavirus
está repleta de afirmações criminosas, práticas contrárias ao consenso dos
especialistas e ações de seu governo em oposição ao bom senso no trato da
matéria. Na verdade, trata-se de um conjunto esperado e coerente, vindo de
alguém que acredita firmemente no negacionismo científico, tão em voga nos
tempos atuais em determinados círculos políticos e sociais. A partir de uma
postura próxima ao fundamentalismo religioso, abre-se uma avenida perigosa para
a aceitação de todo o tipo de dogma na condução da agenda e até mesmo dos
assuntos governamentais.
A linha tênue que deveria separar os espaços do
público e do privado jamais foi respeitada em nossas terras. O neoliberalismo
levou essa prática escandalosa ao limite da defesa dos interesses do
financismo, de maneira que as relações incestuosas entre capital e Estado
passaram a ser consideradas como uma prática normal, um verdadeiro símbolo de
uma falácia – a suposta modernidade contemporânea. A partir dessa experiência
nefasta para o Brasil como formação social republicana e democrática, fica
estabelecida a possibilidade do vale-tudo na condução das políticas públicas.
Esse é caldo de cultura para a introdução sistemática das relações igualmente
incestuosas entre religião e política. Ou melhor, entre igreja(s) e Estado.
Bolsonaro começou seu mandato negando avanços
consolidados pela humanidade em diversos fronts. Esse o caso do campo das
políticas ambientais, das propostas na área da educação e das políticas de
direitos humanos, dentre tantos outros setores. Em pleno século XXI, o
retrocesso medieval é a marca de seu governo. O contraponto dos diversos recuos
do campo civilizatório em direção à barbárie abundam nas notícias veiculadas
pelos meios de comunicação.
De carona com Trump, Bolsonaro ficou na
estrada.
No entanto, com o advento da crise
sanitária a partir do início deste ano, o foco prioritário do presidente passou
a ser a avaliação do coronavirus, da pandemia e das formas de se conviver com
essa nova realidade. Bolsonaro iniciou seu ciclo de disparates ainda durante o
primeiro trimestre, pegando carona nas declarações do Presidente Trump, seu
ídolo convertido em aliado preferencial e incondicional. Assim o fenômeno não
passaria de uma “gripezinha” e seria estimulada por um suposto “vírus chinês”.
De acordo com eles, o mundo ocidental e o Brasil, em particular, não tinham
muito com o que se preocupar.
À medida em que a pandemia se consolida e se
espalha por todos os continentes, o discurso de ambos passa a considerar mecanismos
de cura à doença. Dessa forma, tem início uma cruzada contra o conhecimento
científico reconhecido internacionalmente, com ataques diretos e explícitos à
Organização Mundial de Saúde (OMS) e suas recomendações de combate à covid 19.
Os presidentes se convertem em médicos epidemiologistas e passam a receitar
medicamentos como a cloroquina, cuja eficácia é duvidosa e pode inclusive
provocar efeitos colaterais graves.
Aqui no Brasil, Bolsonaro lança um combate
irresponsável e criminoso contra as necessárias medidas de isolamento para
evitar a propagação do vírus. Na condição de autoridade máximo governamental,
trata com desdém as recomendações dos especialistas. Aparece diariamente em
eventos públicos de conglomeração de pessoas sem máscara e procura introduzir
no imaginário popular uma falsa dicotomia entre estimular a economia e adotar
medidas de confinamento. Na verdade, uma estratégia inteligente de retirar a
sua responsabilidade nos índices recordes de desemprego, jogando-a no colo de
prefeitos, governadores e todos os que não deixam a economia recuperar. Apesar
da evolução trágica dos efeitos da doença, nem mesmo a triste marca dos 100 mil
óbitos atingida em agosto pareceu arrefecer o ânimo negacionista.
General na saúde: guerra perdida para o vírus.
A pressão contra esse comportamento
insano chegou a vir até mesmo de profissionais de seu próprio campo político.
Durante a pandemia, o chefe do governo trocou por duas vezes seus ministros da
saúde, exonerando os médicos Mandetta e Teich. Na sequência, terminou por
colocar no cargo mais um alto oficial da ativa das Forças Armadas, sem nenhuma
experiência ou capacitação na área da saúde. Com a indicação do General
Pazuello, tudo ficou mais fácil para o capitão. O suposto entendido de
logística nos quartéis está contribuindo para derreter ainda mais a já
comprometida imagem das Forças Armadas nesse governo. Em uma das humilhações
públicas a que foi submetido por Bolsonaro, o general foi desmentido a respeito
da afirmação de que o Ministério estaria negociando a compra da vacina de
tecnologia chinesa e ainda teve assumir que a relação ali era do tipo em que
“um manda, o outro obedece”.
A preocupação com a saúde da maioria da
população e a busca de estratégias para combater a covid 19 sempre passaram ao
largo. A única coisa que conta na cabeça do Presidente da República é articular
uma narrativa que se dirija de forma prioritária ao seu eleitorado mais cativo,
polarizado ideologicamente contra tudo o que cheire medidas que possam
favorecer a oposição. Assim, prevalece a lógica de antecipar as eleições de
2022 e dá-lhe paulada em antigos aliados, como Rodrigo Maia, João Dória, Sérgio
Moro e outros representantes do campo conservador em nosso País.
Ocorre que as mortes seguem em ritmo acelerado e
tudo indica que o Brasil tenha mesmo entrado na segunda onda da pandemia. Uma
série de países já estão iniciando o processo de vacinação, inclusive vizinhos
aqui do sul do continente americano. Estamos nos aproximando da marca
tragicamente simbólica de 200 mil óbitos e o Ministério da Saúde sequer tem
montado um esquema confiável e profissional de vacinação. Faltam seringas e
outros quesitos básicos, além, da própria vacina é claro. Bolsonaro tem feito o
possível e o impossível para que a ANVISA retarde ao máximo a aprovação das
mesmas para uso oficial.
Além disso, ele comprou como sua uma verdadeira
cruzada contra a obrigatoriedade das vacinas, em especial a Coronavac - fruto
de parceria entre Butantã e a empresa chinesa Sinovac. Quase todos os dias ele
se manifesta levantando dúvidas sobre os efeitos colaterais da mesma, que iriam
desde a introdução de um chip molecular de monitoramento dos indivíduos até a
ocorrência de transformações genéticas. Uma loucura, que beira a
irresponsabilidade criminosa.
E agora a culpa é dos laboratórios.
Imaginava-se que a derrota de Trump
nas eleições norte-americanas iriam forçar Bolsonaro a assumir um certo
pragmatismo realista em diversos itens de sua agenda governamental. As relações
com a China e a postura frente a pandemia seriam alguns deles. Mas sempre que é
pego na espontaneidade, o capitão não consegue ficar calado. E dá-lhe festival
de imbecilidades que assustam mesmo quem está acostumado a ouvir suas novidades
cotidianas.
Uma das mais recentes foi a declaração de que as
empresas farmacêuticas é que deveriam procurar o governo brasileiro. Se ainda
não temos vacinas, a culpa não é da passividade de seu governo. Afinal seríamos
um mercado potencial para a aquisição de vacinas.
"O Brasil tem 210 milhões de habitantes.
Então é um mercado consumidor enorme de qualquer coisa. Os laboratórios não
tinham que estar interessados em vender para a gente? Por que então eles não
apresentam a documentação na Anvisa?"
Essa fala é reveladora por diversos aspectos. Em
primeiro lugar, por representar uma mudança importante na postura anterior de
ignorar a vacina e sua importância no combate à pandemia. Agora, Bolsonaro
parece ter se rendido às evidências de que não pode ficar à margem do processo
que a absoluta maioria dos governos do globo estão buscando a todo custo. Em
segundo lugar, por reconhecer que a vacina da Oxford (com a qual a Fiocruz
montou uma parceria para produção local) não é a única existente no mundo. Ao
utilizar o termo “os laboratórios” no plural, Bolsonaro abre o caminho para que
o governo possa se utilizar também de outras opções, como a Coronavac, a
Pfizer, a Sputnik e outras ainda serem lançadas oficialmente.
Mas um elemento preocupante que deixa
transparecer na afirmação do presidente é o reconhecimento da área da saúde
como um mercado da batatinha. Aqui deve ter, com toda certeza, os efeitos de um
dedinho de prosa com o superministro da economia. A população brasileira não é
mais encarada como um coletivo de cidadãos que têm todo o direito a usufruir
dos direitos previstos na Constituição. De acordo com a abordagem ultraliberal
do old chicago boy, trata-se de um conjunto de indivíduos
consumidores que talvez estejam interessados em adquirir bens e serviços de
saúde. As vacinas contra a covid 19 são apenas um a mais, dentre os inúmeros
itens a serem ofertados nas prateleiras desse verdadeiro supermercado que lida
com aspectos essenciais da vida do ser humano.
Enquanto os dirigentes políticos do planeta
disputam seu quinhão na produção total e limitada da vacina, Bolsonaro se faz
de difícil e indiferente. Com isso, procura jogar no colo dos laboratórios a
responsabilidade por eventual atraso da vacinação de nossa população. Ao tratar
nosso país como mero “mercado consumidor”, ele assume para si o discurso da
mercantilização da saúde, onde o direito de cidadania desaparece para a
emergência de relações comerciais envolvendo conceitos tais como demanda,
oferta, quantidade e preço. Esse é a contrapartida da política de destruição de
nosso Sistema Único de Saúde (SUS).
E como de costume, o capitão faz cara feia e
posa de valentão. Questionado, ele afirma não ter a menor preocupação com a
emergência ou a pressa para ter em mãos alguma solução que possa ser colocada à
disposição da população brasileira.
“Ninguém me pressiona para nada, eu não dou bola
para isso”.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da
carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do
governo federal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário