02 janeiro 2021

De carona com Trump


Bolsonaro, a vacina e o mercado

Paulo Kliass, Carta Maior

 

A história das relações de Bolsonaro com o a pandemia do coronavirus está repleta de afirmações criminosas, práticas contrárias ao consenso dos especialistas e ações de seu governo em oposição ao bom senso no trato da matéria. Na verdade, trata-se de um conjunto esperado e coerente, vindo de alguém que acredita firmemente no negacionismo científico, tão em voga nos tempos atuais em determinados círculos políticos e sociais. A partir de uma postura próxima ao fundamentalismo religioso, abre-se uma avenida perigosa para a aceitação de todo o tipo de dogma na condução da agenda e até mesmo dos assuntos governamentais.

A linha tênue que deveria separar os espaços do público e do privado jamais foi respeitada em nossas terras. O neoliberalismo levou essa prática escandalosa ao limite da defesa dos interesses do financismo, de maneira que as relações incestuosas entre capital e Estado passaram a ser consideradas como uma prática normal, um verdadeiro símbolo de uma falácia – a suposta modernidade contemporânea. A partir dessa experiência nefasta para o Brasil como formação social republicana e democrática, fica estabelecida a possibilidade do vale-tudo na condução das políticas públicas. Esse é caldo de cultura para a introdução sistemática das relações igualmente incestuosas entre religião e política. Ou melhor, entre igreja(s) e Estado.

Bolsonaro começou seu mandato negando avanços consolidados pela humanidade em diversos fronts. Esse o caso do campo das políticas ambientais, das propostas na área da educação e das políticas de direitos humanos, dentre tantos outros setores. Em pleno século XXI, o retrocesso medieval é a marca de seu governo. O contraponto dos diversos recuos do campo civilizatório em direção à barbárie abundam nas notícias veiculadas pelos meios de comunicação.

De carona com Trump, Bolsonaro ficou na estrada.

No entanto, com o advento da crise sanitária a partir do início deste ano, o foco prioritário do presidente passou a ser a avaliação do coronavirus, da pandemia e das formas de se conviver com essa nova realidade. Bolsonaro iniciou seu ciclo de disparates ainda durante o primeiro trimestre, pegando carona nas declarações do Presidente Trump, seu ídolo convertido em aliado preferencial e incondicional. Assim o fenômeno não passaria de uma “gripezinha” e seria estimulada por um suposto “vírus chinês”. De acordo com eles, o mundo ocidental e o Brasil, em particular, não tinham muito com o que se preocupar.

À medida em que a pandemia se consolida e se espalha por todos os continentes, o discurso de ambos passa a considerar mecanismos de cura à doença. Dessa forma, tem início uma cruzada contra o conhecimento científico reconhecido internacionalmente, com ataques diretos e explícitos à Organização Mundial de Saúde (OMS) e suas recomendações de combate à covid 19. Os presidentes se convertem em médicos epidemiologistas e passam a receitar medicamentos como a cloroquina, cuja eficácia é duvidosa e pode inclusive provocar efeitos colaterais graves.

Aqui no Brasil, Bolsonaro lança um combate irresponsável e criminoso contra as necessárias medidas de isolamento para evitar a propagação do vírus. Na condição de autoridade máximo governamental, trata com desdém as recomendações dos especialistas. Aparece diariamente em eventos públicos de conglomeração de pessoas sem máscara e procura introduzir no imaginário popular uma falsa dicotomia entre estimular a economia e adotar medidas de confinamento. Na verdade, uma estratégia inteligente de retirar a sua responsabilidade nos índices recordes de desemprego, jogando-a no colo de prefeitos, governadores e todos os que não deixam a economia recuperar. Apesar da evolução trágica dos efeitos da doença, nem mesmo a triste marca dos 100 mil óbitos atingida em agosto pareceu arrefecer o ânimo negacionista.

General na saúde: guerra perdida para o vírus.

A pressão contra esse comportamento insano chegou a vir até mesmo de profissionais de seu próprio campo político. Durante a pandemia, o chefe do governo trocou por duas vezes seus ministros da saúde, exonerando os médicos Mandetta e Teich. Na sequência, terminou por colocar no cargo mais um alto oficial da ativa das Forças Armadas, sem nenhuma experiência ou capacitação na área da saúde. Com a indicação do General Pazuello, tudo ficou mais fácil para o capitão. O suposto entendido de logística nos quartéis está contribuindo para derreter ainda mais a já comprometida imagem das Forças Armadas nesse governo. Em uma das humilhações públicas a que foi submetido por Bolsonaro, o general foi desmentido a respeito da afirmação de que o Ministério estaria negociando a compra da vacina de tecnologia chinesa e ainda teve assumir que a relação ali era do tipo em que “um manda, o outro obedece”.

A preocupação com a saúde da maioria da população e a busca de estratégias para combater a covid 19 sempre passaram ao largo. A única coisa que conta na cabeça do Presidente da República é articular uma narrativa que se dirija de forma prioritária ao seu eleitorado mais cativo, polarizado ideologicamente contra tudo o que cheire medidas que possam favorecer a oposição. Assim, prevalece a lógica de antecipar as eleições de 2022 e dá-lhe paulada em antigos aliados, como Rodrigo Maia, João Dória, Sérgio Moro e outros representantes do campo conservador em nosso País.

Ocorre que as mortes seguem em ritmo acelerado e tudo indica que o Brasil tenha mesmo entrado na segunda onda da pandemia. Uma série de países já estão iniciando o processo de vacinação, inclusive vizinhos aqui do sul do continente americano. Estamos nos aproximando da marca tragicamente simbólica de 200 mil óbitos e o Ministério da Saúde sequer tem montado um esquema confiável e profissional de vacinação. Faltam seringas e outros quesitos básicos, além, da própria vacina é claro. Bolsonaro tem feito o possível e o impossível para que a ANVISA retarde ao máximo a aprovação das mesmas para uso oficial.

Além disso, ele comprou como sua uma verdadeira cruzada contra a obrigatoriedade das vacinas, em especial a Coronavac - fruto de parceria entre Butantã e a empresa chinesa Sinovac. Quase todos os dias ele se manifesta levantando dúvidas sobre os efeitos colaterais da mesma, que iriam desde a introdução de um chip molecular de monitoramento dos indivíduos até a ocorrência de transformações genéticas. Uma loucura, que beira a irresponsabilidade criminosa.

E agora a culpa é dos laboratórios.

Imaginava-se que a derrota de Trump nas eleições norte-americanas iriam forçar Bolsonaro a assumir um certo pragmatismo realista em diversos itens de sua agenda governamental. As relações com a China e a postura frente a pandemia seriam alguns deles. Mas sempre que é pego na espontaneidade, o capitão não consegue ficar calado. E dá-lhe festival de imbecilidades que assustam mesmo quem está acostumado a ouvir suas novidades cotidianas.

Uma das mais recentes foi a declaração de que as empresas farmacêuticas é que deveriam procurar o governo brasileiro. Se ainda não temos vacinas, a culpa não é da passividade de seu governo. Afinal seríamos um mercado potencial para a aquisição de vacinas.

"O Brasil tem 210 milhões de habitantes. Então é um mercado consumidor enorme de qualquer coisa. Os laboratórios não tinham que estar interessados em vender para a gente? Por que então eles não apresentam a documentação na Anvisa?"

Essa fala é reveladora por diversos aspectos. Em primeiro lugar, por representar uma mudança importante na postura anterior de ignorar a vacina e sua importância no combate à pandemia. Agora, Bolsonaro parece ter se rendido às evidências de que não pode ficar à margem do processo que a absoluta maioria dos governos do globo estão buscando a todo custo. Em segundo lugar, por reconhecer que a vacina da Oxford (com a qual a Fiocruz montou uma parceria para produção local) não é a única existente no mundo. Ao utilizar o termo “os laboratórios” no plural, Bolsonaro abre o caminho para que o governo possa se utilizar também de outras opções, como a Coronavac, a Pfizer, a Sputnik e outras ainda serem lançadas oficialmente.

Mas um elemento preocupante que deixa transparecer na afirmação do presidente é o reconhecimento da área da saúde como um mercado da batatinha. Aqui deve ter, com toda certeza, os efeitos de um dedinho de prosa com o superministro da economia. A população brasileira não é mais encarada como um coletivo de cidadãos que têm todo o direito a usufruir dos direitos previstos na Constituição. De acordo com a abordagem ultraliberal do old chicago boy, trata-se de um conjunto de indivíduos consumidores que talvez estejam interessados em adquirir bens e serviços de saúde. As vacinas contra a covid 19 são apenas um a mais, dentre os inúmeros itens a serem ofertados nas prateleiras desse verdadeiro supermercado que lida com aspectos essenciais da vida do ser humano.

Enquanto os dirigentes políticos do planeta disputam seu quinhão na produção total e limitada da vacina, Bolsonaro se faz de difícil e indiferente. Com isso, procura jogar no colo dos laboratórios a responsabilidade por eventual atraso da vacinação de nossa população. Ao tratar nosso país como mero “mercado consumidor”, ele assume para si o discurso da mercantilização da saúde, onde o direito de cidadania desaparece para a emergência de relações comerciais envolvendo conceitos tais como demanda, oferta, quantidade e preço. Esse é a contrapartida da política de destruição de nosso Sistema Único de Saúde (SUS).

E como de costume, o capitão faz cara feia e posa de valentão. Questionado, ele afirma não ter a menor preocupação com a emergência ou a pressa para ter em mãos alguma solução que possa ser colocada à disposição da população brasileira.

“Ninguém me pressiona para nada, eu não dou bola para isso”.


Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

Da resistência nascerão novas conquistas https://bit.ly/2WZBd34

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