23 agosto 2021

O legado de José Ramos Tinhorão

Tinhorão foi contraditório, mas fundamental ao unir música e Brasil
Sem o pesquisador, muito da história de nossa música ainda estaria na penumbra
Fábio Palácio, na Folha de S. Paulo


Em que pesem incongruências e um marxismo por vezes esquemático, José Ramos Tinhorão representou para a música popular o que Celso de Magalhães, primeiramente, e Câmara Cascudo, mais tarde, representaram para os estudos de folclore.

Referindo-se, no livro “Música, Doce Música”, ao “despontar da consciência nacional”, Mário de Andrade dizia que “se esta alguma vez se manifestou com eficiência na arte, unicamente o fez pela música”. Difícil não recordar essa célebre sentença quando se pensa no jornalista, pesquisador e crítico José Ramos Tinhorão.

Morto em 3 de agosto, aos 93 anos, ele teve papel destacado nas diversas atividades que desempenhou, a começar pelo trabalho como jornalista arguto nas Redações de veículos como Diário Carioca e Jornal do Brasil.

Ali desenvolveu o veio de pesquisador e crítico cultural que o tornaria célebre. Também ali ganhou, por iniciativa do lendário Pompeu de Sousa, o apelido que o acompanharia por toda a vida. “Tinhorão” é o nome de uma planta venenosa do gênero Caladium, uma referência ao caráter implacável de suas críticas.

Foi um operário dos conhecimentos. Sem o acúmulo documental que reuniu, muitas informações sobre a história de nossa música ainda estariam na penumbra. Diria mesmo que ele representou para a música popular o que Celso de Magalhães, primeiramente, e Câmara Cascudo, mais tarde, representaram para os estudos de folclore.

Tinhorão, desconfio, concordaria com a frase de Mário de Andrade que abre este texto. Afinal, no núcleo de seus esforços sempre esteve a busca pelas raízes nacionais e populares de nossa música. Era sua convicção que gêneros como o maxixe, o choro e o samba representam momentos do amadurecimento da consciência popular e do concomitante avanço do ideal de nacionalidade.

O maxixe foi nossa primeira síntese musical genuinamente popular. Resulta da expansão das camadas urbanas. Com o fim do regime escravocrata, ampliavam-se os contingentes de trabalhadores livres. Muitos vinham das fazendas para as cidades, e passavam a usufruir de vida mais diversificada.

Como parte desse processo, viria o contato com a polca e outras danças europeias de salão, incluindo a schottisch e a mazurca, que logo transbordariam dos salões das elites para as salas de visita das classes populares.

Esse processo remodelou a forma como esses gêneros eram dançados, pois as novas camadas urbanas lhes introduziam passos antes desconhecidos —resultado da liberdade performática própria da cultura popular.

Como narra Tinhorão em sua “Pequena História da Música Popular”, o maxixe resultaria da diligência dos instrumentistas “em adaptar o ritmo das músicas à tendência aos volteios e requebros de corpo com que mestiços, negros e brancos do povo teimavam em complicar os passos das danças de salão”.

Processo semelhante faria surgir o gênero denominado choro. Ele é produto do trabalho sobre elementos do maxixe e do antigo lundu —gênero que designa tanto uma dança ritual de origem negra quanto um tipo de canção urbana contemporâneo da modinha, e que, segundo Tinhorão, sempre revelou “uma inegável procedência brasileira”.

É assim que, através de sucessivas sínteses e metamorfoses —que incluem a polca-lundu, o tango brasileiro, o maxixe e, finalmente, o choro e o samba—, a música feita no Brasil vai se transformando em música brasileira.

Não confundamos as duas coisas. Música feita no Brasil sempre houve, mas, até meados do século 19, era por demais dispersa e fragmentada para que pudesse gerar uma síntese nacional. O que havia então eram cantos e danças indígenas e africanos, cancioneiro do europeu colonizador, canção rural, danças de salão, hinários católicos e bandas militares. Tudo isso, explica Tinhorão, eram apenas os vetores iniciais de algo que só mais tarde se iria estabelecer:

“Para que pudesse surgir um gênero de música reconhecível como brasileira e popular, seria preciso que a interinfluência de tais elementos musicais chegasse ao ponto de produzir resultante, e, principalmente, que se formasse nas cidades um novo público com uma expectativa cultural passível de provocar [...] essa síntese”.

O Rio do final do século 19 e início do 20 foi o laboratório onde se operou essa transfiguração. Ao descrevê-la, Tinhorão mostra que, assim como Mário , via na música um lugar privilegiado de expressão da consciência autóctone.

Ele ocuparia um lugar próprio no campo do nacionalismo cultural. Sua formação marxista o levou a enfatizar os efeitos, sobre nossa música, das deformações resultantes de um modelo econômico dependente.

Tinhorão sempre insistiu no caráter postiço da renovação musical brasileira que se operou nos anos 1950-60. Elaborou de modo paradigmático a tese de que o movimento da bossa nova (como também, mais tarde, o tropicalismo) teria sido deflagrado a partir de uma linha internacionalista, à custa da assimilação de recursos da música norte-americana.

A bossa nova, para Tinhorão, refletia os impasses do desenvolvimento brasileiro, entre eles a aguda estratificação social que, no Rio de Janeiro, chegava a se consubstanciar em apartheid geográfico, com os pobres habitando os morros e o subúrbio, e os mais aquinhoados vivendo na Zona Sul.
Essa situação teria acarretado o surgimento de uma camada de jovens desligados das tradições populares. Nessa realidade de desenvolvimento desigual e dependente, a tradição jazzística norte-americana encontrou terreno fértil para florescer.

Tal interpretação logo despertaria polêmica. Tinhorão seria criticado não tanto pela denúncia da dependência, mas por sua excessiva concentração na dimensão sociológica. Isso o teria levado a traçar linhas de causalidade muito diretas, desprovidas de maiores mediações, entre a base econômica e o plano propriamente cultural.

O discurso musical assumia, nessa perspectiva, caráter de mero reflexo, suas causas últimas residindo em uma realidade preexistente. Bastava essa comparação, na verdade uma remissão, e todas as características do produto musical surgiriam cristalinas.

Essa posição era própria de um primeiro momento da crítica cultural marxista. Embora tivesse conhecido variações, algumas alcançando maior sofisticação, representou considerável obstáculo à análise de autores como Joyce, Hemingway e Proust.

Preso às férreas determinações da economia, esse marxismo primordial não examinou adequadamente a complexidade de um campo que lida com hábitos, percepções, experiência, valores, linguagem.

Os problemas dessa abordagem começam a ser superados por pensadores como Antonio Gramsci, Siegfried Kracauer e Walter Benjamin, e alcançam novo patamar com uma geração mais recente de autores marxistas que inclui nomes como Raymond Williams e Fredric Jameson.

Porém, mesmo quando consideramos o aspecto estritamente sociológico, é preciso atentar para o fato de que o fenômeno da dependência não se inaugura, em nosso país, apenas no século 20. Já no período anterior o Brasil revelava, em seu processo de desenvolvimento, as chagas da subordinação econômica, que também se refletiram nos rumos da música de então.

O próprio Tinhorão faz referência à progressiva substituição do oficlide pelo saxofone, entre fins do século 19 e início do 20, como “um primeiro sintoma de alienação que marcava o advento da influência esmagadora da música norte-americana no Brasil”.

Seria, de fato, muito otimista pensar que a influência estrangeira sobre a música brasileira tenha começado nos anos 1950, com a bossa nova. Mário de Andrade, em seu “Ensaio sobre a Música Brasileira” (1928), já apontava, referindo-se ao maxixe, que esse gênero se encontrava crescentemente “infiltrado” pelos foxtrotes americanos.

Nem por isso o pioneiro do modernismo lhe negava originalidade. “Tanto mais curioso que os processos polifônicos e rítmicos de jazz que estão nele não prejudicam em nada o caráter da peça. É um maxixe legítimo. De certo os antepassados coincidem.”

“Os antepassados coincidem”: Mário revela visão ampla da história da música. De fato, o mesmo impressionismo francês e as mesmas polcas e mazurcas que nos Estados Unidos se fundiram aos shouts e worksongs, aos field hollers e blues para formar o ragtime e toda a corrente do jazz, no Brasil se uniram ao lundu e outros ritmos populares para formar a corrente do samba. Corrente da qual, rigorosamente consideradas as dimensões rítmica, melódica e harmônica, não há como excluir a bossa nova.

Nesse ponto costumava insistir Tom Jobim. Como destaca a pesquisadora Ana Suzel Reily em artigo na prestigiada revista Popular Music, “Jobim foi sempre inflexível que a única relação que sua música tinha com o jazz resultou de seus ancestrais comuns”. A bossa, para Tom, é filha do samba e do choro. É um samba renovado ritmicamente e que eleva à plenitude as possibilidades harmônicas contidas em germe no choro.

É o samba ganhando aprimoramento e universalidade, como aliás não deixa de reconhecer o próprio Tinhorão, quando, ao citar o musicólogo Brasil Rocha Brito, define o movimento da bossa-nova como “o culto da música popular no sentido de integrar no universal da música as peculiaridades específicas daquela”.

Se, apesar de tudo, o trabalho de Tinhorão abrigou incongruências, o maior dos equívocos seria usá-las para reduzir sua contribuição. Tinhorão foi, ele próprio, manifestação viva da consciência nacional de que nos falava Mário de Andrade. Diria mesmo que ele levou ao extremo as preocupações e o projeto nacionalista que não eram apenas de uma vertente do modernismo.

Hoje, quando nos aproximamos dos cem anos do movimento de 1922, vale reiterar: a construção plena da nacionalidade era aspiração do conjunto da geração modernista.

É verdade que havia ali uma ala mais cosmopolita, que parecia secundarizar os objetivos de afirmação nacional em prol do compromisso prioritário com o universalismo.

Em “Música, Doce Música”, Mário de Andrade contraria essa visão. Ao discorrer sobre as relações entre nacional e universal, conclui que todo universalismo desprovido de esteios na realidade nacional degenera em cosmopolitismo abstrato.

Ora, músicos como Villa-Lobos e Tom Jobim surgem alinhados a essa perspectiva programática que busca não qualquer universalismo, não a modernização pela modernização, mas uma arte que, enraizando-se na idiossincrasia brasileira, projeta-se a partir desse sólido alicerce para conquistar vida universal.

Essa visão codifica, no plano cultural, o projeto de afirmação do Brasil, de sua singularidade e de seus interesses. Programa bem enunciado por Darcy Ribeiro quando, em “O Povo Brasileiro” (1995), postula que o Brasil avança “prodigiosamente como uma morena humanidade em flor, à espera de seu destino. Claro destino, singelo, de simplesmente ser, entre os povos, e de existir para si mesmos”.

Tinhorão associou-se de forma convicta a esse projeto. Nessa chave deve ser entendida sua notável contribuição.

Fábio Palácio - Jornalista, doutor em ciências da comunicação pela ECA/USP e professor de jornalismo da UFMA (Universidade Federal do Maranhão)

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