“Retrocesso de 30 anos”: como Bolsonaro vê os alunos com deficiência
Para a pedagoga Maria Teresa Mantoan, decreto do governo “é claramente ilegal”
Portal Vermelho
O STF (Supremo Tribunal Federal) realizou, na última semana, uma audiência pública para discutir o nefasto decreto do governo Jair Bolsonaro que institui a política nacional de educação para alunos com deficiência. Mas, para a pedagoga Maria Teresa Mantoan, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), esse tema sequer deveria estar sendo debatido pela Corte. “O decreto é claramente ilegal. Para que que todo esse circo?”, declarou a educadora à BBC News Brasil.
Depois que a medida bolsonarista entrou em vigor, em outubro do ano
passado, o PSB entrou com ação no STF alegando que inconstitucionalidade. A
política foi suspensa pelo Supremo em dezembro, em decisão individual do
ministro Dias Toffoli, depois ratificada pelo plenário. Agora, o STF está
ouvindo especialistas e organizações a favor e contra o decreto antes que os
ministros se manifestem oficialmente sobre o assunto.
Segundo Maria Teresa, o Decreto 10.502/2020 – que incentiva a criação de
escolas especializadas para atender pessoas com deficiência que “não se beneficiam”
da educação regular – contraria a Constituição Federal de 1988 e a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996. Hoje, mais de 90% dos
alunos com deficiência estão matriculados em escolas regulares.
“A LDB se baseou no preceito constitucional de que a educação é para
todos segundo a capacidade de cada um e não admite escolas e turmas especiais”,
diz a educadora. A seu ver, as escolas propostas por Bolsonaro “não oferecem o
básico, como etapas e níveis de ensino, e não podem oferecer certificados”
“No Brasil, só existe um sistema de ensino, que é o ensino comum
regular. Quem está em uma escola especial não está cumprindo o período de
escolaridade obrigatória. Qualquer escola assim já deveria ter sido fechada
desde 1996”, diz Maria Teresa, que coordena o Laboratório de Estudos e
Pesquisas em Ensino e Diferença da Unicamp.
Numa demonstração da natureza preconceituosa e discriminatória da gestão
Bolsonaro, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, disse que a convivência
entre uma parcela dos alunos com deficiência mais grave e os alunos sem
deficiência é impossível. Ele chegou a afirmar que a presença dos alunos com
deficiência “atrapalha” os outros na sala.
Sua tese é refutada por Maria Teresa, que tem uma experiência de seis
décadas como professora: “Ele (o ministro) não tem que dizer
que o aluno com deficiência atrapalha. Ele tem que munir a escola de
conhecimentos e inovações para que ela consiga dar conta de todos os
estudantes”.
Ribeiro depois se desculpou, mas voltou a lançar críticas ao que chama
de “inclusivismo” – termo que, segundo ativistas, foi criado pelo próprio
ministro para dar uma conotação negativa à defesa da inclusão escolar de todos
os estudantes. Porém, conforme Maria Tesesa, a nova política não representa um
avanço – mas, sim, um retrocesso de quase 30 anos na educação brasileira.
Segundo a pedagoga, incentivar escolas especiais seria voltar às normas
que vigoraram de 1994 a 2008, quando uma nova política passou a estabelecer
como norma a integração de pessoas com deficiência no ambiente escolar normal.
Maria Teresa foi uma das responsáveis por redigir a política de 2008, baseada
na Constituição e na LDB, para tornar a educação especial uma modalidade
complementar de ensino – e não um sistema à parte que substituísse o sistema
regular.
A pesquisadora explica que a política de 1994 tratava a deficiência pelo
viés médico, como um problema do indivíduo. Por sua vez, a política de 2008
entendia a questão pela ótica social, ou seja, que a deficiência resulta da
interação da pessoa com o meio. O problema está nos obstáculos que o meio impõe
a essa pessoa, e seria preciso acabar com essas barreiras.
“Isso mudou tudo”, diz a pesquisadora. “Quando o ministro da Educação
fala em deficiência grave, ele mostra que não é uma pessoa bem informada sobre
o assunto”, critica Maria Teresa. “Essa forma de enxergar a questão ficou no
passado. O que tem que mudar é a escola, não é a pessoa.”
Um resultado da política de 2008 é refletido pelo censo escolar: em
2020, 93,3% dos 1,3 milhão de crianças e adolescentes com deficiência na
educação básica estavam matriculados em escolas regulares. Em 2005, eram apenas
23%. Para Maria Teresa, este é um dos motivos da criação de uma nova política
pelo governo Bolsonaro.
“Toda essa discussão em torno do decreto só serve para encobrir que o
verdadeiro motivo da nova política: tentar recuperar os alunos que as escolas
especiais perderam, fazer renascer essas escolas e confundir o pais dizendo que
eles têm uma escolha entre a escola especial e a comum, quando na verdade a
escola especial não deveria existir há tempos”, afirma Mantoan.
Segundo a educadora, com o decreto de Bolsonaro, recursos que antes eram
destinados à inclusão escolar passarão a ser destinados para as escolas
especializadas. “É tudo uma cortina de fumaça para dar dinheiro público para
escolas privadas”, diz. “O que me deixa chateada é ver essa cortina sendo
incentivada pelo Supremo. Em vez de simplesmente cumprir a lei, ficam fazendo
esse mise-en-scène, convidam todo mundo, querem ouvir um lado e o
outro.” - Com informações do BBC News Brasil
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Veja:
Convergência quanto à necessidade de ampliar as alianças https://bit.ly/3kbDHqq
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