A vida finda
Melka Pinto*
Vivo hoje o 7° dia da partida do meu pai dessa vida, perdi a pessoa que mais amava nesse mundo (até minha filha chegar). Foi como se tivessem arrancado um pedaço do meu corpo, dói tanto, morrer dói nos outros. Não importa as circunstâncias, o tempo, a forma, ninguém quer perder quem ama. E ainda que ele vivesse dizendo "eu já posso morrer" se referindo a nossa condição material: ele aposentado, deixaria a pensão pra minha mãe, eu enfermeira concursada, meu irmão engenheiro, uma neta que ele sempre me pediu, ele não podia morrer. Eu não queria perdê-lo por nada nesse mundo.
Na segunda
passada, 16 de agosto de 2021 perto das 19h recebo a ligação da minha mãe aos
prantos, "beta, acho que teu pai tá morrendo" e eu morri um pouquinho
ali também, nunca uma viagem pra Itamaracá foi tão longa, fiz promessas pra
Deus e pra Nossa Senhora da Conceição. Mas não tinha mais promessa que desse
jeito, meu pai tinha morrido. Partiu de forma relativamente breve, com
alguma angústia de uma insuficiência respiratória aguda seguida de parada
cardiorrespiratória irreversível, não sei o quanto doeu e ele sofreu, mas peço
a Deus que tenha sido menos que meu parto, espero que tenha sido realmente
rápido, que ele não tenha sofrido quase nada, pois era como prevíamos que
poderia ser sua morte, devido ao histórico familiar e pessoal de dois infartos
anteriores e a pressão alta.
É de família
partir assim devido a uma herança de defeito no coração, ele sempre me contava
do pai dele, meu avô comunista que nunca conheci, meu pai contava que ele
morreu depois de ir se deitar e ninguém viu, partiu em silêncio. Isso de saber
que ele não ficou hospitalizado em processo de degradação e que foi
"rápido" me conforta um pouco, apesar de claro achar que mais cuidado
com a saúde permitiriam mais anos aqui com a gente, minha mãe falava tanto, em
abril mandei textão pra ele falando da tosse, de exames de PSA e de ir num
cardiologista, mas ele não queria se cuidar. Mas quem vai saber se isso nos
daria mais tempo aqui com ele? Sei lá, nesses últimos dias inclusive esqueci
que meio milhão de brasileiros também morreram. Esqueci que a pandemia existe.
Meu pai
sobrevivia ileso a esses tempos atuais de novo coronavírus e de bolsonarismo,
cuidou da minha filha junto com minha mãe por três meses em 2020 para eu
trabalhar na linha de frente e estava vacinado com as duas doses, a primeira
delas fui eu quem apliquei, nesse dia enquanto ele esperava a vez dele, me
olhava todo orgulhoso vendo eu vacinar outras pessoas. O fato é que meu
pai morreu e como já falei, era a pessoa que eu mais amava nessa vida. Ele me
compreendia, me estimulava a ser o que eu quisesse, me orientava, me cuidava,
me protegia.
Fui ler sobre
luto, apareceu uma matéria no meu Google notícias devido a morte recente de
Tarcísio Meira, lá uma psicóloga dizia que a parte boa da morte, ou positiva
era que quem fica cria consciência da finitude da vida. A vida é finda. Ela
acaba. A gente não sabe quando vai. Pode ser amanhã, ou em 40 anos. Mas ela
acaba. Não deixe pendências. E quando chega ao fim o que fica é o que a gente
fez até o coração ter parado de bater, o que fica na memória de quem permanece.
Meu pai deixou um legado de amor, de cuidado, de coragem, de honestidade, de
honra, de superação, de resistência. Mas o luto, ao menos nesses primeiros sete
dias pra mim é sentir a dor de não ter mais meu pai comigo pra ser a primeira
ligação de qualquer coisa importante na minha vida, ou de lembrar de como eu
ficava ansiosa quando era criança esperando ele chegar do trabalho e corria ao
encontro dele só de ouvir o barulho da chave.
Estive com
ele no final de semana que antecedeu sua partida na segunda-feira, mostrei
minha dissertação coisa que nunca tinha feito desde que comecei a escrevê-la,
falei da importância profissional do mestrado pra mim, da minha pesquisa e da
minha vontade de dar aula, ele preparou um camarão pra mim, chamei ele pra
assistir Bacurau, mas ele não quis, devia ter insistido, ninguém pode morrer
sem assistir esse filme e meu maior alívio é ter uma semana antes agradecido
pela sua vida e por tudo que ele me fez ser, coisa que fazia com alguma
frequência, pois era o que ele representava pra mim, a gratidão de tudo que eu
sou.
Meu pai não
morreu, virou poesia.
*Enfermeira, mestranda em Saúde Pública pela UFPE, ex-presidente da União dos Estudantes de Pernambuco-UEP
Nenhum comentário:
Postar um comentário