Treze de maio
Passávamos adiante a formação
da escola burra, uma escola que passava o apagador até mesmo em nossa história
familiar de negros, com a pregação da redentora Princesa Isabel, Santa Isabel,
que libertara os negros do Brasil
Urariano Mota*,
Vermelho www.vermelho.org.br
No café da manhã, de passagem minha mulher lembrou o dia treze de maio.
Não fosse a sua lembrança, eu não escreveria esta crônica.
Os primeiros trezes de maio que lembro, em mistura aos goles do café, me
vêm do Ginásio Ipiranga na infância. Olho para o lado agora como se nada visse,
assim como os colegas negros em 1961 olhavam de lado, ou baixavam os olhos, ao
ouvirem a lição lida em voz alta no livro didático:
“Abolição da escravidão – A escravidão negra foi introduzida no Brasil
em 1550. Não tendo os portugueses conseguido escravizar os índios para
obrigá-los a trabalhar na lavoura, resolveram utilizar negros africanos nessa
tarefa…”
E mais adiante, todos haviam que decorar a resposta certa da pergunta no
questionário: “Por que foi introduzida a escravidão negra no Brasil?”. Ora,
respondíamos todos (negros, brancos e mulatos), “porque os portugueses
não conseguiram escravizar os índios para obrigá-los a trabalhar nas lavouras”.
O espaço daquele aprendizado era um círculo fechado, redundante: os
índios não quiseram trabalhar como escravos, daí que a solução foi importar
negros da África. E, naturalmente, os negros foram escravizados porque os
índios eram rebeldes. Então, para dar substância ao círculo, era ensinado que
os negros vinham mansos, passivos, cordatos, porque assim era a sua natureza,
ser negro e escravo em uma só pessoa. Então os meus antigos amigos, colegas,
olhavam de lado.
É interessante notar que, no Brasil de 1961. negros eram os meninos de
pele mais escura que a nossa. Negros eram os meninos de cabelo mais duro que o
nosso. Negro não era uma raça, era uma cor do lápis de cor, ou a cor do grafite
em toda a pele. E por isso líamos todos as lições que confirmavam a exclusão
geral, como se fosse uma exclusão particular de outros, dos outros negros,
diferentes de nós mesmos:
“A Pincesa Isabel assina a Lei Áurea – … A Regente vai lançar o nome no
pergaminho, quando, em nome do povo, recebe uma caneta de ouro, cravejada de
pedras preciosas. E é com a bela caneta de ouro que assina a lei que a Nação
enternecida cognominou de ‘áurea’. Da rua, a multidão, em altos brados, exige a
presença de Isabel. E a Princesa aparece à janela, tendo ainda na mão a pena
com que acabou de dar liberdade à raça negra do Brasil. Na praça inteira, o
povo agita os braços festivamente, bradando em coro, em pleno delírio: –
Redentora! Redentora! Redentora!…”
Um dia ainda vou escrever sobre o grande mal que esse tipo de educação
fez a todos nós. Uma educação mitificadora, preconceituosa, de omissões e
mentiras. Todos nós aprendíamos um Brasil sem conflitos e sem história.
Aprendíamos um Brasil ideal para as sinhazinhas prendadas. Lá na sala de aula,
em todos os trezes de maio nos virávamos para os negros, para os de pele mais
escura que a nossa. Os meus colegas, os meus amigos, incapazes de uma resposta
plena da rebeldia dos quilombos, baixavam os olhos. Os meus irmãos de pele e
coração às vezes sorriam, sorriam com o seu riso mais branco que os detergentes
da televisão, sorriam só com os dentes brancos, quando ouviam: “hoje é teu dia,
negão”.
E com isso passávamos adiante a formação da escola burra, uma escola que
passava o apagador até mesmo em nossa história familiar de negros, com a
pregação da redentora Princesa Isabel, Santa Isabel, que libertara os negros do
Brasil. Somente muitos anos depois, em São Paulo, vi um treze de maio
diferente. Em 1978, vi um treze de maio de negros de todas as cores, de todas
as raças, que repunham em lugar da salvadora dos pobres negrinhos um orgulho e
uma disposição de puxar o véu da história.
Mas então já não estavam ao meu lado os amigos, irmãos, colegas do
Ginásio Ipiranga. Aqueles, de pele mais escura que a minha, que baixavam os
olhos. Eles haviam carregado para o resto das suas vidas as lições de perguntas
fechadas e respostas prontas. Quem salvou os negros do Brasil? “A Princesa
Isabel”, os antigos colegas sabiam na ponta da língua. E por isso viraram
médicos medíocres, funcionários servis, engenheiros mesquinhos, indivíduos sem
humanidade que mantêm distância dos negros mais pobres.
Vocês não sabem o quanto é bom ter chegado a um 13 de maio, agora,
quando as novas gerações sorriem e zombam da redentora, da princesa que salvou
os negrinhos de alma branca. Viva este novo tempo. Do meu canto, saúdo com um
cafezinho negríssimo todos os negros. Todos os negros que somos, claros,
mulatos, brancos e homens livres do Brasil.
.
Vamos construir
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