Em defesa do direito à memória e à verdade
Extinção de comissão de mortos
e desaparecidos políticos seria grave violação
Folha de S. Paulo, VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)
Durante a ditadura militar e até 1995, os parentes dos mortos e desaparecidos no Brasil não tinham atestado de óbito de seus familiares, o que bloqueava todos os atos da vida civil, como testamentos e novos nascimentos, colocando os filhos em uma situação esdrúxula, sem poder provar a morte de um dos genitores. Não podiam adquirir ou vender bens, pois se exigia certidão de estado civil —além da imensa dor e angústia de viverem sem qualquer informação sobre o paradeiro de seus entes queridos.
Indo ao encontro do clamor dos familiares dos mortos e
desaparecidos, em 1995 foi sancionada a lei 9.140, pedra angular de todo o
processo de reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro pelas
graves violações de direitos humanos e crimes praticados pelos agentes da
ditadura militar, concedendo reparações aos familiares. Ao mesmo tempo era
criada a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP),
referida ao período de 1961 a 1979.
Atendendo a justas reivindicações dos familiares, o termo final
de sua aplicação foi alterado por lei para o dia 5 de outubro de 1988. Outra
lei, em 2004, ampliou a atribuição da CEMDP para proceder ao reconhecimento de
pessoas falecidas em virtude de repressão policial ou em decorrência de
suicídio na iminência de serem presas.
A CEMDP, instituição impar na história constitucional
brasileira, deu notáveis contribuições, sob três governos sucessivos, à efetivação
do direito à memória e à verdade. Mas, depois do início do governo Jair Bolsonaro (PL), uma série de retrocessos levaram à sua desmobilização.
Em janeiro de 2020, novo regimento da CEMDP acabou com a emissão
de atestados de óbito que reconheciam como verdadeira causa da morte das
vítimas da ditadura a "perseguição violenta e política do Estado".
Inviabilizou a busca dos corpos dos militantes políticos que seguem
desaparecidos, mesmo passados 30 anos do fim da ditadura. Desobrigou o governo
federal de promover reparação simbólica, como monumentos e memoriais de
homenagem às vítimas.
A extinção da CEMDP está anunciada, mesmo que
ainda esteja longe de concluir sua missão legal. Há numerosos casos pendentes,
que demandam providências, como reconhecimento de vítimas, busca e localização
de corpos e registro de óbitos que ainda não foram objeto de requerimentos
individuais, como ocorre com os relacionados a desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, na Vala Perus e no Cemitério Ricardo Albuquerque.
A identificação de ossadas em estudo e na guarda direta ou
indireta da comissão aguarda confronto com o DNA dos familiares. O atual
governo tem repetidamente negado recursos —ainda que a isto esteja obrigado
legalmente— ao Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) da Unifesp.
A extinção da CEDMP viola tanto a legislação brasileira como
desrespeita sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes
Lund. Ali foi estabelecido que "o direito dos familiares das vítimas de
identificar o paradeiro dos desaparecidos e, se for o caso, saber onde se
encontram seus restos, constitui uma reparação e, portanto, gera o dever
correspondente pelo Estado de atender a essa expectativa".
Neste momento, graves pressões recorrentes são feitas contra o
processo democrático e assistimos chocados a crimes bárbaros, como o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês
Dom Phillips. É crucial que as instituições do Estado
brasileiro reafirmem seu compromisso com a proteção do direito à memória e à
verdade. Apelamos em especial à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão a
tomar medidas urgentes para impedir a extinção iminente da CEMDP.
O desaparecimento forçado afetou centenas de famílias no Brasil
e em toda a América Latina durante as ditaduras militares. A ONU, já em 1978,
expressava alarme sobre essa grave violação dos direitos humanos. Enquanto não
forem exauridas todas as formas de investigações, se prevalecerem a dúvida e a
impunidade, familiares seguirão sofrendo as consequências desse crime
permanente e continuado.
Fernando Henrique Cardoso
Ex-presidente da República (1995-2002)
Nelson
Jobim
Ex-ministro da Justiça (1995-97)
José
Gregori
Ex-ministro da Justiça (2000-2001)
Paulo
Sérgio Pinheiro
Ex-secretário de Estado de Direitos Humanos (2001-2002)
.
Veja: Quem semeia o caos colhe o quê? https://bit.ly/3zPlBnw
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