01 dezembro 2023

A saga palestina (4)

Das intifadas aos dias atuais
Leia o quarto artigo da série Limpeza étnica na Palestina sobre as intifadas palestinas como forma de protestos popular perante a violência perpetrada pelo Estado de Israel
Rafael Gustavo de Oliveira/Le Monde Diplomatique


 

A primeira intifada – “revolta” ou “levante”, em português – também conhecida como “revolta das pedras”, teve início em 1987, no mês de dezembro, depois que uma série de mortes de palestinos residentes da Faixa de Gaza foi promovida pelo exército israelense. A revolta eclode, inicialmente, ao norte da Faixa de Gaza, no campo de refugiados de Jabalya – mesmo campo que se tornara visibilizado em 2023, após uma série de bombardeios israelenses ocorridos entre o final de outubro e início de novembro, deixando cerca de 195 mortos e mais de 120 desaparecidos, em acordo com as autoridades locais.

Na Palestina, eventos que acontecem na Faixa de Gaza “ecoam” em outros espaços componentes desta, como na Cisjordânia, Jerusalém e em “48” (categoria palestina local de territorialidade que se refere ao espaço reconhecido pela Comunidade Internacional como pertencente ao Estado de Israel). Este fenômeno de “reverberação” acontece não apenas pela identificação comum da população local enquanto palestinos (através de relações familiares e afetivas por/entre todos estes espaços) e com a conjuntura social e política decorrente da ocupação colonial israelense, mas, sim – e com igual importância – também em função do trânsito cotidiano de sujeitos palestinos entre os referidos espaços (seja por trabalho, tratamento médico, estudo, relações familiares ou outros). Este trânsito, por esta via, é parte componente da construção cotidiana da Palestina enquanto um espaço “único” mas, em termos categóricos locais, dividido em quatro espaços, quais sejam, a Faixa de Gaza, Jerusalém, Cisjordânia e 48.

Isto posto, note-se que quando há eventos em qualquer destes espaços (a exemplo dos mártires – categoria local referente a qualquer palestino morto em função da presença israelense na Palestina, seja pelo exército ou não), é notória a “resposta” que eclode nos outros lugares, em forma de protestos nas ruas, enfrentamentos contra o exército israelense e greves gerais. Estas respostas a partir de espaços outros, embora amplamente observável nos dias atuais, não é nova e, nesta via, informou o inicio da primeira intifada. Deste modo, após os eventos no campo de refugiados de Jabalya, manifestações rapidamente ganham corpo também na Cisjordânia e em outros locais. Por sua vez, a segunda intifada tem seu início em setembro do ano 2000, tendo como uma das principais motivações a ida de Ariel Sharon à mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém. Ainda, outra motivação foi a morte de Mohamad al-Durrah, pelo exército israelense, no segundo dia da segunda intifada, em 30 de setembro de 2000. Na ocasião, o cinegrafista palestino de Gaza, Talal Abu Rahma, capturou em vídeo o menino Mohamad al-Dura, de 12 anos de idade, sendo protegido por seu pai, Jamal al-Durrah, quando ambos tentavam se proteger de um fogo cruzado. Suas lentes então capturaram o momento em que o exército israelense, que ocupara uma posição em frente a ambos, deliberadamente dispara contra pai e filho. O menino veio a morrer logo após e, a imagem capturada pelo cinegrafista tornou-se um dos maiores símbolos e ícones da segunda intifada.

Os levantes populares que se seguiram tomaram espaço em toda a Palestina. Assim, a “revolta das pedras” levou este nome em função de sua maior característica, o uso de pedras nos confrontos contra o exército. Ainda, vale notar que as intifadas não contaram com lideranças políticas, ainda que estas pudessem, posteriormente (como demonstro a seguir) intervir. Grosso modo, trata-se de dois levantes plenamente populares, onde, como apontam as narrativas locais, “todos participavam”, mulheres, homens, jovens e adultos. As intifadas, deste modo, podem ser vistas enquanto o resultado de uma série de eventos anteriores, tendo a ocupação israelense e suas implicações como a principal motivação os eventos que as desencadearam como “estopins”. O que se seguiu, no período de ambas as intifadas, foi o acirramento dos controles israelenses, o aumento de uma já forte opressão e repressão das manifestações e um número bastante alto de palestinos mortos nos confrontos, além do aumento considerável da população carcerária.

CHECKPOINTS

A partir disto, vale comentar que foi na década de 1980, durante a primeira intifada, que vislumbrou-se o início das políticas israelenses de controle de trânsito e implementação e instalação de checkpoints militares por toda a Palestina. Ainda, nesta década deu-se início às políticas, ainda hoje em voga, de controle de estradas, circulação de ambulâncias, pacientes, estudantes, visitantes, trabalhadores, entre outros. Também se deu início neste período as construções de assentamentos israelenses, o controle da água, o controle sobre a construção de casas de palestinos e as ações de demolição das mesmas.

A primeira intifada tem seu fim após os acordos de Oslo I, no ano de 1993. Este acordo, assinado no dia 13 de setembro daquele ano, foi o resultado de uma série de negociações feitas em segredo, na cidade de Oslo, na Noruega, entre representantes israelenses e palestinos. Na ocasião da formalização do acordo, foram signatários o então representante da OLP, Yasser Arafat, e o Primeiro Ministro israelense à época, Ytzhak Rabin. Os acordos foram mediados pelo então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. Neste acordo, a OLP redige uma carta publicizando o “reconhecimento do Estado de Israel nas fronteiras de 1967”. Em contrapartida, o governo israelense emite uma breve nota reconhecendo “a OLP como representante legítimo dos palestinos”. Aqui, destaca-se também outro resultado destes acordos, a saber, o surgimento da ANP (Autoridade Naciona l Palestina, ou, PA, Palestinian Authority). Esta seguirá enquanto representante da Palestina perante à Comunidade Internacional, tal qual observa-se atualmente. O acordo previu, também, a retirada gradativa das forças israelenses da Faixa de Gaza e Cisjordânia, visando a futura construção de um Estado palestino nestes espaços. Esta retirada, no entanto, jamais ocorreu. Assim, acontecem, ainda na Noruega, os acordos de Oslo II, assinados em 1995 nos dias 24 e 28 de setembro. Estes acordos previam a divisão da Cisjordânia em três áreas, que foram designadas como áreas A, B e C.

Nestes termos, as áreas A ficaram a cargo da administração e segurança da ANP, as áreas B teriam administração da ANP e segurança israelense e, por fim, as áreas C, frequentemente referidas localmente como no one’s land, ficariam sob administração e segurança israelense. Esta situação permanece até os dias atuais. A relação entre Yasser Arafat e as autoridades israelenses, de forma secreta, gerou descontentamento em boa parte da comunidade palestina, ainda que o primeiro siga sendo referido como uma pessoa importante na chamada “causa palestina”. Assim, uma série de manifestos e declarações contrárias aos acordos, acusando suas implicações inclusive de antemão, passaram a ser publicizadas.

Edward Said[1] publicara, em 11 de outubro de 2000, um curto artigo intitulado “Nada mais a oferecer”, onde o autor inicia comentando que os acordos de Oslo tiveram graves falhas desde o início. Para ele, este teria entrado, à época, em sua fase terminal, a de uma violenta confrontação, repressão israelense desproporcional, rebelião palestina generalizada e grande perda de vidas, principalmente do lado palestino (SAID, 2012, p.102). Também sobre isto, aponta o cientista político Norman Finkelstein[2]:

Caberia talvez argumentar que, apesar da carta de Oslo, a aplicação das decisões do acordo sobre a criação de um conselho palestino, de uma polícia palestina e assim por diante ainda seria capaz de deixar os palestinos em melhor posição para alcançar uma autêntica autodeterminação. (…) Mas o fato é que a nova realidade muito provavelmente propiciará o aumento do controle israelense sobre os palestinos. Temos aqui a hipótese de “bantustanização”, aventada não apenas por Said como por experimentados observadores israelenses. “Nem é preciso dizer”, escreve Benvenisti, “que a ‘cooperação’ baseada nas atuais relações de poder não passa de uma permanente e disfarçada dominação israelense, e que a autodeterminação palestina é um mero eufemismo da bantustanização. (FINKELSTEIN, 2005, p.289,290).

A ocupação israelense, como antes apontado, segue em curso. Tal qual exposto no início deste artigo, os eventos que tomaram espaço na Faixa de Gaza, neste ano de 2023, causaram reações por toda a Palestina. Protestos e confrontos se intensificaram exponencialmente ao passo que notícias, vídeos, fotos e relatos sobre os bombardeios em Gaza se tornam mais frequentes e o número de palestinos mortos aumenta de forma assustadora e sem precedentes – em função de bombardeios a hospitais, escolas (locais de da UNRWA), sedes de ONGs, sedes de agências da ONU, residências, estradas, ambulâncias e regiões de fronteiras – sem contar as repercussões das investidas israelenses por terra. Neste cenário, buscando suprimir quaisquer possibilidades de levantes palestinos na Cisjordânia, as políticas israelenses de controle, através dos aparatos militares componentes da ocupação, se intensificaram em proporções assustadores.

Os resultados de tal intensificação foram o aumento exponencial da presença militar, o armamento em massa de colonos, o ataque contra carros em estradas e comunidades rurais palestinas por colonos, o fechamento de checkpoints, incursões diárias do exército israelense nas cidades, o bloqueio de entrada e saída de localidades específicas (em especial, Nablus, ao norte, e Hebron, ao sul), violenta repressão à manifestações em cidades e vilarejos, confrontos diários nas cercanias dos checkpoints com mortes constantemente reportadas (a exemplo de Bet El e Qalandia, nos arredores de Ramallah), confrontos com o exército no interior das cidades quando há presença militar, instauração de restrições de mobilidade na região (seja por imposição do exército, seja para evitar encontros com colonos nas estradas, seja por escolha deliberada em não deslocar-se para fora de algumas cidades como medida de precaução), mudança drástica nas rotinas laborais, greves gerais constantes, recomendações de restrição de movimento no interior das cidades entre às 10 da noite e o início da manhã (sem horário específico, dada a constante presença militar israelense ao raiar do dia), evacuação repentina em massa de estrangeiros (seja por imposição de suas instituições de trabalho, chamadas de embaixadas ou decisões individuais), aumento inflacionário dos preços dos alimentos e alguns medicamentos em função da diminuição do fornecimento.

Ainda, dentre as situações mais alarmantes, destacam-se os eventos ocorridos no campo de refugiados de Jenin, onde uma mesquita fora bombardeada, tratores destruíram um sem número de casas e, também, promoveram a destruições de ruas pavimentadas visando a impossibilidade de utilização destas por carros. Além disto, o exército israelense promoveu a retirada e destruição de monumentos e símbolos de resistência do campo. Note-se que, embora a cidade de Jenin tenha sido afetada com políticas de perseguição e punição coletiva, este campo não foi o único alvo do exército israelense com tais ações. Outros campos de refugiados têm sido alvo constante de incursões, destruições, prisões e mortes, tais quais os presentes nos arredores de Ramallah, Nablus, Tulkarem, Belém, Hebron e outros. Até o momento, mais de 150 palestinos foram mortos na Cisjordânia e mais de 1.900 foram presos desde o início das operações.

Rafael Gustavo de Oliveira é doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná. Pós-doutorando pelo Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Residindo na Palestina há, somados, quatro anos, à parte de visitas ao campo por cerca de uma década, tem desenvolvido pesquisa acerca de construções locais de territorialidades e usos de categorias locais de espaço e suas componentes identitárias.

Texto adaptado da tese de doutorado “Al Dakhel, cartografias como experiência: reflexões a partir de um trabalho de campo na Palestina

[1]SAID, Edward: Cultura e política / Edward W. Said; organização Emir Sader; tradução Luiz Bernardo Pericás. – 1.ed., rev. – São Paulo : Boitempo, 2012.

[2] FINKELSTEIN, Norman G.: Imagem e realidade do conflito Israel-Palestina. Tradução de Clóvis Marques. – Rio de Janeiro: Record, 2005

Ilustração: Jamal al-Durrah e Mohamad al-Durrah, pai e filho, momentos antes de serem atingidos. (Reprodução/Vídeo/Al-Jazeera)

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