30 maio 2024

Déficit habitacional & fascismo

Habitação: A crise alimenta o fascismo na Europa

Falta de políticas sociais – principalmente para moradias – faz disparar os preços dos alugueis. Insegurança é capturada pela extrema direita, com discurso de ódio aos imigrantes – e pode levá-la a uma grande vitória nas eleições do Parlamento europeu
Martín Cúneo, no El Salto, com tradução de Raul Chilianina Revista Opera/OutrasPalavras


As dificuldades enfrentadas por milhões de famílias de classe média e baixa para ter acesso a um apartamento não são exclusivas da Espanha. Em maior ou menor grau, a crise imobiliária está se alastrando por toda a Europa. Os preços das casas subiram, em média, 47% entre 2010 e 2022, de acordo com o Gabinete de Estatísticas da União Europeia (Eurostat), e os preços dos aluguéis subiram 18% nos 27 estados-membros como um todo.

O aumento dos preços foi quase tão espetacular quanto o crescimento da extrema-direita, que, pela primeira vez na história, deverá conquistar mais de um quinto das cadeiras em disputa nas eleições europeias de 9 de junho. De acordo com as pesquisas, essas forças ultraconservadoras ganhariam o primeiro lugar em votos em quatro países da região – França, Itália, Bélgica e Holanda – e poderiam disputar o primeiro lugar em outros cinco – Áustria, República Tcheca, Hungria, Polônia e Eslováquia. 

Esses dois fenômenos são paralelos, mas há uma ligação entre eles, de acordo com o estudo “Os riscos do mercado de aluguéis e o apoio à extrema-direita”. A precarização do trabalho, “uma fonte constante de ansiedade” para uma população que vem perdendo poder aquisitivo e segurança, não explica sozinha o crescimento dessas organizações. Para Tarik Abou-Chadi, Denis Cohen e Thomas Kurer, pesquisadores das universidades de Oxford, Mannheim e Zurique, respectivamente, as transformações urbanas da última década e o aumento dos preços das moradias são a peça que falta para entender o crescimento desses partidos autodenominados “anti-establishment”.

“Nossos resultados sugerem que o desenvolvimento urbano, assim como a transformação do mercado de trabalho, representa uma fonte importante e até então negligenciada de insegurança econômica e preocupação social com importantes implicações políticas”, resumem.

O caso holandês

A moradia estava entre as principais preocupações da população holandesa antes das eleições de novembro de 2023, nas quais o Partido da Liberdade (PVV), de extrema-direita, saiu vitorioso. Nesse país, os preços das casas dobraram na última década, e os aluguéis dispararam: o aluguel de um apartamento pode custar quase 1.000 euros (5.578 reais) e uma casa de três quartos pode custar 3.500 euros (19.523 reais) por mês, de acordo com o The Guardian

A escassez de moradias – são necessárias quase 400 mil casas para atender à demanda –, a concorrência por apartamentos e os preços inacessíveis em relação à renda média tornaram-se combustíveis para um partido que baseou sua campanha no “ódio ao outro”, nas palavras do Relator Especial da ONU sobre Moradia, Balakrishnan Rajagopal. Os partidos de extrema-direita prosperam, observou ele, quando “podem explorar as lacunas sociais” devido à falta de investimento e de políticas adequadas e “culpar as pessoas de fora”. 

O pacto governamental firmado em 15 de maio entre o anti-islâmico PVV e três outros partidos de direita inclui o compromisso de construir mais moradias, mas também de executar uma política de asilo muito mais rígida, bem como de deportar todas as pessoas que não tenham uma autorização de residência válida, “mesmo que à força”. 

O líder do PVV, Geert Wilders, que renunciou ao cargo de presidente para chegar a um acordo com a centro-direita, concentrou sua campanha em um discurso contra os imigrantes, a quem acusou de se estabelecerem na Holanda – “a aldeia idiotizada da Europa” – para obter “moradia e saúde gratuitas”. 

Nas eleições de novembro, o PVV obteve 23% dos votos. Mas se apenas os holandeses entre 18 e 35 anos tivessem votado, o Partido da Liberdade teria conquistado quatro cadeiras a mais, de acordo com o instituto Ipsos. Isso também não é coincidência. Assim como na Espanha, a população mais afetada pela crise imobiliária na Holanda é a dos jovens. Esse também foi o segmento da população mais influenciado por uma campanha que relaciona migração e moradia. 

“Medo de perder o status”

De acordo com a pesquisa de Tarik Abou-Chadi, Denis Cohen e Thomas Kurer, o “medo de perder o status” foi e é uma das forças motivadoras por trás da ascensão do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD). A precarização do trabalho e as dificuldades de acesso e pagamento de uma moradia fazem parte, segundo essa análise, de um “pacote de ameaças que alimentam a inquietação” e que levam a um aumento no apoio à direita radical. 

Esse estudo, que analisa como o mercado de aluguéis afeta o comportamento político, mostra, no caso da Alemanha, que os aumentos de preços se traduzem em mais apoio individual à extrema–direita, especialmente entre os eleitores de baixa renda que “não têm um colchão financeiro para absorver um possível aumento de aluguel”.

E não se trata apenas das famílias que sofreram esses aumentos, mas também o “risco” de sofrê-los. Isso ocorre com frequência, explicam os autores, também em regiões “em declínio, onde não ocorreram os maiores aumentos de preços, mas onde se repetem os mesmos padrões de ‘medo de perder status’, de não poder pagar pela moradia ou de ter de se mudar para um bairro ou cidade mais barata”. De acordo com essa pesquisa, não são necessárias “experiências de dificuldades econômicas” para empurrar os eleitores para a direita. A “ameaça iminente de declínio econômico na forma de riscos econômicos latentes” é suficiente.

Em resposta a esses riscos do mercado de aluguéis, que representam “uma grande ameaça à situação social e econômica das pessoas”, os eleitores podem recorrer a atores políticos que “desafiam abertamente o status quo político”, analisam.

Na Espanha, a direita e a extrema-direita concentraram seus discursos sobre moradia nos direitos dos proprietários, nas ocupações e na criminalização de ocupações de imigrantes e populações vulneráveis, com propostas para aumentar a segurança jurídica, acelerar os despejos e endurecer as penalidades para pessoas que morem em um apartamento sem contrato. 

Os vínculos entre problemas de moradia e imigração foram usados recentemente pelo Vox espanhol, que em abril lançou uma proposta de lei para exigir “prioridade nacional” no acesso a benefícios sociais e programas de moradia, reforçando o boato de que a população imigrante tem vantagens sobre a espanhola quando se trata de lutar por um contingente de moradia pública quase inexistente. A Espanha conta com apenas 2,5% de moradias públicas, em comparação com 30% na Holanda.

“Se quisermos impedir o crescimento da extrema-direita, privá-la de algum oxigênio, coisas como moradia devem ser consideradas direitos fundamentais”, declarou o relator da ONU, Rajagopal.

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