10 novembro 2024

BRICS x EUA: ascensão & queda

Kazan, Filadélfia: polos de um mundo em caos
A cúpula do Brics em Kazan marcou uma nova expansão do bloco, mas não sem dores, enquanto o mundo observa, com respiração suspensa, a eleição dos Estados Unidos
Hugo Albuquerque/Opera Mundi  

Nem Kazan, na Rússia, sede da última cúpula do Brics, muito menos a Filadélfia, um dos espaços vitais na disputa eleitoral dos Estados Unidos, são as capitais de seus países, mas hoje elas são polos opostos de um mundo em caos – essa expressão, por sinal, foi empregada pelo presidente chinês Xi Jinping para descrever a conjuntura global em mais uma declaração de amizade ao seu homólogo russo Vladimir Putin, presidente da última cúpula do Brics. 

caos – ou pelo menos 乱 [luàn], a partícula que o define na escrita chinesa – tem uma existência muito antiga entre aquele povo, significando, originalmente, a tentativa de controlar a seda desordenada. No caso europeu, a palavra grega χάος, [khaos] deriva de bocejar ou abrir a boca, o que reflete a própria expressão de choque diante da desrealização da ordem. As duas metáforas expressam bem a forma do assombro de cada um diante da desordem do mundo.

Entre os chineses, o caos também pode ser um elemento de contraste, na forma como ele é encarado, entre a era de Mao Zedong e a Reforma e Abertura. No entanto, como nem tudo é o que parece, Mao nunca disse propriamente que “existe um grande caos abaixo do céu. A situação é excelente”, mas que o “Grande Caos Sob o Céu [a China, o mundo] chega à Grande Ordem Sob o Céu” na famosa carta de julho de 1966.

Não era, vejamos, um processo ameno ou sem riscos, nem que o velho timoneiro zombasse dos “fantasmas e monstros” que saltavam, muito pelo contrário: é a velha dialética e unidade de polos opostos da China – onde houve tantos Hegel antes de Hegel – pela qual uma coisa ou fenômeno transmuta ao atingir o seu limite. Aqui, parece ser o caso, mas o fenômeno em questão é fruto da unidade entre os polos de Kazan e da Filadélfia.

No caso, se Kazan é uma escolha óbvia – seja porque ela sediou a cúpula do Brics ou pela sua importância em desfazer a divisão entre Europa e Ásia, pela força de sua própria natureza –, a Filadélfia não parece tão evidente assim. Mas a metrópole mais populosa do estado americano da Pensilvânia terá, possivelmente, o poder de decidir a próxima eleição americana, que hoje está em um impasse incrível. 

Brics, dores do parto de um novo mundo que precisa nascer

Em tese, o bloco se expandiu e deu andamento, ainda que de maneira acidentada. A vitória de Putin ao atrair dezenas de líderes à Rússia e, inclusive, o secretário-geral da ONU, serviram para fazer com que até a mídia dos Estados Unidos reconhecesse que Moscou não está isolada. O acordo entre chineses e indianos acerca da conturbada fronteira entre os dois países, que foi mediada pela Rússia, seria outra bela foto. Mas nem tudo foi simples.

A ausência de Lula na delegação brasileira, vítima de um acidente doméstico, foi, por outro lado, uma grande presença. A habitual função indiana de ser, dentre os membros fundadores, o polo antagônico à ampliação e intensificação do Brics, foi trocada pelo Brasil. Narendra Modi, o premiê indiano, em seus constantes giros, parecia dessa vez particularmente sorridente e preocupado em posar bem nas fotos com Xi e Putin.

Ainda que não seja segredo para ninguém no Brasil que Celso Amorim é cético sobre a expansão do Brics – com deixou público, já antes das últimas eleições presidenciais, em entrevista a James Hermínio Porto e a este articulista –; ainda que se pondere a necessidade de criar critérios mais claros para a adesão de novos membros ou parceiros, o fato é que a inquietação brasileira vai em uma direção mais complexa. 

O Brasil poderia, por exemplo, estar optando pela intensificação dos projetos do bloco em vez de sua expansão, mas não parece ser essa a opção. Nesse sentido, a posição brasileira – austera na recepção de novos membros e na admissão de novos parceiros – também não parece ser a de priorizar a aceleração da criação de instrumentos internos ao Brics, os quais são necessários e, em certa medida, urgentes.

E não estamos falando de pouca coisa em termos de instrumentos: o mecanismo para trocas comerciais para substituir o Swift, mas também a moeda de reserva – que é sim necessária, como pontua Paulo Nogueira Batista Jr. –, o Acordo de Reserva Contingente que poderia cumprir funções alternativas ao Fundo Monetário Internacional (FMI) – como lembrou Marco Fernandes recentemente – ou o incremento do Banco do Brics. 

Obviamente, seria talvez possível que o Brasil não fizesse convites. Mas isso é diferente do papel brasileiro em vetar a Venezuela, que soou como um desafio a uma vontade geral do Sul Global, que pleiteia massivamente o ingresso no bloco – isso dificulta a própria integração sul-americana. Ficam no ar inúmeras questões, as quais se conectam a uma extensão da tentativa frustrada do Brasil de mediar as eleições venezuelanas e como isso se arrasta.

Com a falta de sinergia do Brasil, para usar aqui um termo da moda, caberá ao motor sino-russo seguir uma tarefa que, como apontado, tem menos a ver com expansão contínua e mais com a intensificação do processo de integração, inclusive para justificar a desejada ampliação – também para gerar fatores objetivos que impactem na disputa política dentro do Brasil ou da Índia. Há os rumos americanos, no entanto.

As eleições americanas, o velho que está morrendo

Depois das eleições americanas terem sumido do noticiário brasileiro, uma vez que as eleições municipais tomaram as atenções durante meses e se fazia crer que, por inércia, Kamala Harris bateria Donald Trump, o tema retorna como uma inquietação constante sobre quem vencerá – naquilo que se tornou um impasse de pesquisas, embora a curva sorria favorável a Donald Trump, principalmente a julgar pelos estados pendulares.

O espírito da Filadélfia é central nisso. Não que restem dúvidas de que Kamala vencerá, por larga margem, naquela que é a metrópole mais importante do estado da Pensilvânia. A questão é a margem e a quantidade de eleitores que irão às urnas para compensar os votos republicanos no interior. Levando em consideração que quem levar por um voto no estado ganhará seus 20 delegados, essa variável será determinante.

O leitor mais atento dirá que a vitória de Biden em 2020 no condado da Filadélfia, pela margem de 471 mil eleitores, foi menor do que a margem positiva de 475 mil votos para Hillary Clinton em 2016, mas ela perdeu no estado e Biden ganhou – e que talvez a ampliação dos votos em Chester, Delaware (o condado da Pensilvânia), Montgomery, Dauphin, Allegheny ou a virada no Erie é que tenham sido fundamentais. Mas aí mora um equívoco geográfico.

Ocorre que tirando os condados de Allegheny – onde, aliás, fica a cidade de Pittsburgh – e Erie, que se encontram, respectivamente, no sudoeste e noroeste da Pensilvânia, todos os demais ficam na região metropolitana da Filadélfia ou próximos a ela. Ou seja, em um sentido metropolitano, ainda que eleitoralmente a lupa se aplique aos condados, estamos falando da Filadélfia e seus humores. 

Por ora, bolas de cristal de lado, as possíveis viradas de Trump em relação a 2020 nos estados de Nevada, Arizona e Geórgia não serão suficientes para mudar o resultado no Colégio Eleitoral e lhe permitir derrotar Kamala. Isso dependeria de uma virada também em Wisconsin, onde a democrata ainda lidera por pouco segundo o agregado. Nesse sentido, a questão da Pensilvânia é determinante.

Por outro lado, na estimativa da OpenSecrets, Kamala Harris arrecadou um pouco menos do que Joe Biden em 2020, com valores corrigidos pela inflação dos últimos quatro anos: cerca de quase 1,6 bilhão de dólares contra o 1,1 bilhão de Trump, o que é um recuo de ambos, mas uma diminuição da vantagem para os democratas. Isso é um dado preocupante, pois os democratas precisam arrecadar muito mais do que Trump para vencer.

Caso Trump volte ao poder, isso pegará no contrapé a estratégia brasileira, na medida em que o percurso de relações exteriores do governo da Frente Ampla, chefiada por Lula, parece convergir bastante com o dos democratas, ou setores deles. O Ocidente, ao qual o chanceler Mauro Vieira supõe que o Brasil faça parte, parece ser cada vez mais um totem dos democratas, não dos republicanos autocentrados e quase isolacionistas. 

Para chineses e russos será uma questão menor, porque eles têm se mantido irredutíveis no seu caminho pelo Brics, mantendo uma unidade entre si e também interna nessa direção, muito embora os democratas possam ser amenos com Pequim e os republicanos acenem para Moscou. Isso também não mudará a aposta iraniana pelo Brics, muito embora Trump seja uma ameaça direta a Teerã.

Para a estratégia brasileira, uma eventual vitória de Kamala afastará mais ainda o país do Brics e de suas potencialidades. No entanto, uma vitória de Trump demandará um novo cavalo de pau, pois produzirá um isolamento do Brasil, hostilizado pelo eventual futuro presidente e um tanto distanciado do bloco, de quem já foi mais próximo. Se houver uma votação parelha com uma contagem sob júdice, pior ainda. Tudo mudará em razão de fatores que não controlamos.

Para voltar de onde viemos, a complexa posição do presidente Mao acerca do caos é de que, dialeticamente, a ocorrência dele leva a um movimento de reequilíbrio e construção de uma nova ordem. A natureza disso, contudo, é incógnita, e demanda luta. Não podemos perder a esperança pelo futuro, mas como Mao concluiu em sua polêmica carta, “o futuro é brilhante, mas a estrada é tortuosa.

(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.

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