Natal dos idosos, uma felicidade?
Abraham B. Sicsú*
Época de comemorações. De abraços e beijos. De risos falsos, de fingimento. Irônico fazer declarações de eterna amizade àqueles com quem nos digladiamos o ano todo, a vida toda. Mas, não se pode perder a pose, todos somos irmãos, dizem, tudo é fraterno.
Prometo e não cumpro. Na solidão da aposentadoria,
procurar não ser crítico e mordaz. Não ir às festas que ainda nos convidam, mas
que cheiram hipocrisia, não gerar controvérsias para evitar atritos, posturas
que de nós são esperadas.
Nas festas, se não vamos, perdemos. Uma única
oportunidade que temos no ano. Passar o ano todo sem ver gente é um problema,
época em que se pode, pelo menos, falar mal dos outros ausentes, claro, e
compartilhar com a turba sádica e maliciosa essas maldades. Melhor suportar e não
se isolar mais do que já estamos ou somos. Pode ser divertida essa
transgressão.
Recebo um livro. Um romance policial. Não é muito meu
gênero, mas começo a ler. Ultimamente leio tudo o que me cai na mão ou na tela
de meu celular. Leio até bulas de remédios e considero instrutivos os termos
que jamais entenderei. Fazer passar o tempo é arte complexa, tudo vale para
sentir que não se está só.
O romance, como diz o termo, começa com um “affair”
que envolve um escritor e uma médica. Mas, como era de se esperar, não dá
certo. A desilusão aparece e a alternativa, do personagem principal, foi buscar
fugir para um paraíso nas montanhas. Lindo, cheio de aventuras, paisagens
belíssimas.
Moral da história. Para curar uma decepção nada melhor
que um nababesco local com muita bebida e vinho, muitas oportunidades para
substituir o que se perdeu por prazer e luxúria. O problema é saber que os
parcos vencimentos das aposentadorias, em nosso país, não permitem tais
aventuras. Não é solução para nossos idosos.
Constatação, isso leva a sentimento depressivo. Pena
que isso não seja alternativa para nosso aposentado. Quem vai querê-lo em lócus
quase da ilha da fantasia, onde conseguir recursos para férias caras e
perdulárias? Aventar tal possibilidade é vista como demência, vão colocá-lo em
um asilo e, mesmo sem desejar, obrigá-lo a se locomover em uma cadeira de
rodas. Alugada, claro, que trava em qualquer saliência no solo. Um perigo!!
Recebo um texto. Um amigo falando das doenças de nossa
época. Corajoso e sincero. Ansiedade e depressão, o mundo feito para exacerbar
esses males numa sociedade individual e competitiva. Atinge a todos, em
qualquer idade. Mas, ao velho que caminha devagar, que é sempre ignorado, que
suas memórias são só dele, ninguém recorda mais, tornam-se um peso quase
insustentável, quase impossível de carregar. Reconhecidas pela classe médica
como doenças, ao cidadão comum, esses sintomas, são traduzidos com duas
palavras: esquisitice e frescura. Mais um estigma a ser carregado.
As festas, sim, as festas. Muita comida e bebida.
Limitações alimentares existem, impedem o desfrutar sem controle, mas isso não
é o problema. Momentos de tristeza vividos. Não encontrar os que lhe
consideravam, alguns se foram para o além, outros estão imobilizados com o
envelhecer do corpo, é o real desgosto. Imaginar que o próximo pode ser você,
tema para profunda agonia.
Ter que sorrir para aqueles que lhe expuseram em seus
defeitos naturais da velhice, todos temos, sem o mínimo respeito por sua idade,
apenas para conseguir aparecer em ambientes restritos ou conseguir pequenas
vantagens que o puxa-saquismo pode trazer, incomoda e muito.
Não poder chamar de filho da puta um mau caráter, não
poder mostrar que o pouco que conseguiram advém de atos que você construiu a
vida toda, uma tortura, ser politicamente correto para quem passou dos setenta,
uma malvadeza. Não nos imponham isso.
A polidez continua sendo norma. Encontros têm que ser
comportados. Falso acreditar que do velho tudo se permite. Ao contrário, tem
que ser monitorado, tem que ser amordaçado. Dizer verdades incomoda. Devem
ficar para outros ambientes, normalmente a meia voz, baixinho, como se fosse
pecado, como se fosse fofoca. O bom comportamento exigido uma prova de que se
desconhece o querer dos mais velhos, não poder expressar gera revolta.
Os presentes natalinos são importantes. Gastar um
pouco faz parte da época. Escolher é um problema. O idoso é estigmatizado. Deve ganhar meias ou
pijamas. Talvez uma camisa, mas que seja discreta, nada de cores berrantes, ou
dizeres revolucionários. Cuecas, só samba canção. Passou o tempo, devem ser
condizentes com alguém que não pode mais participar, se revoltar. Desejos só de
papinhas e de música clássica. Nada de coisas ditas transgressoras, nada de
sonhos libidinosos.
Um oasis, alguém se lembrou de lhe dar um livro. Viva.
Poderemos exercitar a mente. Fugir do real e entrar num mundo mágico. Mas que
não seja moralista, que não seja comportado. O tema pode ser uma bela aventura,
um suspense provocativo, uma biografia excitante, um descrever de coisas
escondidas ou esquecidas. Por favor, esqueçam livros técnicos, um porre para
quem não vai usar mais.
De preferência que tenha sexo. Sim, temos desejos, e
como, pelo menos em pensamento somos os mais vigorosos dos terrestres, aqueles
que têm a maior ereção, aqueles que chegam ao gozo mais pujante. Jamais nos
imaginamos mortos, sempre acreditamos em novas aventuras, em novos grandes
romances ou em situações novas para os com que já compartilhamos muito afeto.
Não matem nossa imaginação. Sejam inventivos, tragam temas excitantes e deixem
de lado preconceitos de um estereótipo de um velhinho sem desejos.
Nesta época, decorações cafonas e dissonantes, em que
a repetição de músicas sem graça e combinação de cores nada harmônicas, em que
o pisca pisca de luzes faz quase o descolar da retina, ou nos torna caolhos,
comemorar se fez obrigação.
Todos entendendo que vivemos em um mundo que afugenta
o prazer, construindo cenários que nos amarram a preconceitos, que nos impõe
padrões que ignoram as reais motivações da vida mesmo nos que tem mais idade.
Afinal de contas, é Natal, mudemos a postura.
Comemoremos, com toda a malícia e picardia possível!!!
[Ilustração: Charles Apencelayh]
*Professor aposentado do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
Leia também um poema de Cida Pedrosa, "A mulher de maio" https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/12/palavra-de-poeta-cida-pedrosa_9.html
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