'Ruptura' e o retrato da exaustão do atual modelo capitalista de trabalho
A série Ruptura expõe a exaustão do trabalho no século XXI, refletindo a precarização, a uberização e o esgotamento profissional em um mundo hiperconectado.
Thiago Modenesi/Vermelho
O avanço da tecnologia e das possibilidades que a alta conectividade online traz acabaram capturadas pelo capital, sendo posta a serviço do sistema em vigor e colaborando na ampliação da exploração do trabalho das pessoas e estimulando o culto ao individualismo e narcisismo.
Os limites do trabalho nunca foram tão forçados, e tão questionados, como hoje. Esse desconforto, essa sensação de um trabalho estafante, que suga mais e mais os trabalhadores e trabalhadoras, está refletido na série “Ruptura” (Severance no original estadunidense, exibida na Apple TV), que acabou se tornando o maior sucesso desse streaming, em certa medida por conseguir capturar esse ambiente e esse sentimento de insatisfação.
Em pleno debate que vivemos da jornada 6×1 no Brasil e tendo o esgotamento profissional tão presente, além do esgotamento crescente dos modelos de trabalho tradicionais, o processo de precarização dele, apelidado de uberização, impulsionam novas discussões e até mesmo a possibilidade de uma mudança da matriz do que seria a classe trabalhadora do século XXI.
O trabalho não encanta (será que já encantou?), por mais que algumas empresas insistam no roteiro de chamar os seus empregados de “colaboradores” ou “associados”, há uma desconexão cada vez maior destes com o seu trabalho, aumentando o desejo de buscar novos limites entre trabalho e a vida profissional. Afinal, como diz o protagonista da série: “trabalho é só trabalho, não é?”
Aí que está a inovação na série “Ruptura”, expondo um modelo de trabalho extremado, permitindo que os funcionários tenham suas personalidades separadas em 2, através da implantação de um chip, criando um outro “eu” para apenas trabalhar durante o expediente, não lembrando de nada da própria vida fora deste. Essa separação fictícia radicalizada é reflexo justamente do questionamento: se tivéssemos a opção de não lembrar de nada, de nos desligarmos enquanto trabalhávamos, o faríamos?
O que tornou mais e mais o trabalho tão nocivo ao ponto de querermos esquecê-lo? Por que aumenta a quantidade de pessoas que preferem ser informais, trabalharem em aplicativos ou afins, sem direitos trabalhistas e outras garantias? É preciso analisar o quão profunda são as mudanças no mundo do trabalho.
Já vivemos num mundo do esgotamento profissional há algumas décadas, houve um agravamento disso a partir da globalização da internet e as possibilidades de cobrança que esta traz, conectando as pessoas 24 horas por dia ao trabalho. Pesquisas recentes mostram que 76% dos trabalhadores e trabalhadoras relatam já ter tido burnout e quase 40% pensam em se demitir dos atuais empregos. O Brasil bateu recorde de afastamentos do trabalho por saúde mental, aproximadamente 500 mil pedidos de licença junto ao INSS, segundo o Portal G1.
As jornadas exaustivas (daí a necessidade de enfrentar esse debate), a cobrança por resultados mais e mais irreais e a pressão descomunal são muito maiores do que qualquer promessa de ascensão ou realização profissional ofertada pelas empresas.
A jornada reduzida não é uma invenção do Brasil, alguns países já aplicam jornadas de quatro dias, tendo resultados efetivos na produtividade e no bem-estar dos trabalhadores (Portugal, Islândia e Inglaterra, por exemplo), com registros das próprias empresas de uma melhora do equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho em si. Mas a proposta de redução segue polêmica, com grande resistência do capital e do setor majoritário do empresariado.
Os modelos de trabalho passam por uma profunda, e até mesmo disruptiva, transformação. O avanço da busca por uma maior flexibilidade é real, mas acaba em disputa entre as concepções que priorizam a flexibilização de jornada e as que estimulam o trabalhador no rumo do “empreendedor individual”, o freelancer com menos ou nenhuma garantia trabalhista, disponível ao empregador, com jornada intermitente.
A crise do capital, o fim do campo socialista no século XX e do Estado de Bem-Estar Social nos países capitalistas, com o neoliberalismo apontando o mundo no rumo do desmonte dos direitos trabalhistas, da precarização do trabalho e maximização dos lucros são parte basilar deste debate. A luta de classes segue presente.
Enquanto enfrentamos a dura realidade é possível apreciar os episódios de “Ruptura” e enxergar ali uma dura crítica ao trabalho no século XXI, a exploração capitalista e a desumanização do trabalhador.
[Se
comentar, assine]
Leia: Desigualdades regionais no tempo presente https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/meu-artigo-no-portal-grabois-3.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário