Ronaldo Correia de Brito, no Terra Magazine
Quando eu tinha cinco anos vi o diabo em carne e osso. Não era propriamente o malino, o satanás, o fute, mas um homem comum, que nem chamaria minha atenção se não usasse uma capa vermelha e preta, um rabo comprido e chifres na cabeça. Eu acabara de chegar ao Crato, uma cidade do sul cearense, vindo dos Inhamuns, onde as notícias do carnaval eram remotas. Meu pai sintonizava a Rádio Clube de Pernambuco num aparelho Philips - comprado por uma fortuna -, que causou verdadeira revolução entre os sertanejos acostumados a escutar aboios, toques de viola e sanfona. O silêncio a que estávamos habituados desaparecia no meio de marchas de blocos e frevos canção.
O rádio fabuloso era alimentado por uma bateria de carro e, graças ao engenho do meu pai, o mundo entrou porta adentro na nossa casa situada bem longe dos centros urbanos. Um desassossego para minha mãe, que precisava servir café e dar atenção às visitas, chegando toda noite para conhecer a geringonça falante. Temerosas, elas olhavam a invenção lá de fora do terreiro, espreitando com medo. O corpo a ponto de correr e sumir nas estradas esperava apenas algum sinal de alarme, um barulho estranho, o pipoco da máquina. Perguntavam como era possível caber tanta gente numa caixa tão pequena e qual o tamanho das pessoas espremidas ali dentro. Espalharam o boato de que ninguém mais podia falar mal do meu pai, porque ele ouvia tudo no rádio. Boato que o deixou com as orelhas sem coçar enquanto habitamos naquele deserto.
O homem fantasiado de tinhoso, cheirando lança perfume e dando voltas numa pracinha do Crato, só assustava os meninos matutos. Meu imaginário ainda não havia elaborado o carnaval que aprendi a amar depois, com os excessos de um mundo de cabeça para baixo. O diabo tomando porres de cloretil se desenhava igualzinho ao que aparecia nas representações do arcanjo São Miguel, visto nas igrejas e paredes das famílias piedosas. Ao lado de um confessionário da Catedral, duas estampas me arrepiaram na primeira vez em que as contemplei. A primeira representava a boa morte: um enfermo sereno, cercado da família e de anjos que aguardavam para levá-lo ao céu. A segunda era a morte de um pecador, com os familiares aos prantos, o moribundo de rosto contorcido, demônios tentando arrastá-lo às profundezas do inferno, enquanto anjos bem frágeis faziam força para subtraí-lo às garras diabólicas.
O encontro inesperado com o cramulhão carnavalesco botou minhas sinapses neuronais para funcionar e elas entraram em pane. Continuei sem compreender o que se passara comigo. Não tinha nenhum espelho por perto, mas acredito que saiu fumaça pelos meus ouvidos e nariz, o que poderia significar que eu fora contaminado. Pelos poderes de Lúcifer? Não, pelo carnaval, o que dá no mesmo.
O menino que nunca vira uma festa de Momo, apenas escutara acordes de marchas recifenses falando de nomes esquisitos como Felinto, Pedro Salgado, Guilherme e Fenelon, batia de cara com o treloso sem nenhum aviso, como se ele tivesse escapado de uma encruzilhada. As informações davam nó dentro da cabeça e eu buscava compreender como o azarado, que me ensinaram a temer e odiar, de repente se tornava bonzinho, palhaço, dando pinotes e correndo atrás da meninada. Meu pai até me contara a história de um cantador que venceu o cujo numa peleja de viola. Por conta de que desordem o moço estava ali em unhas e dentes e não carregava ninguém para o inferno, não se danava com as almas pecadoras?
Por conta do carnaval, essa festa que vira o mundo às avessas.
Enquanto a Igreja Católica esperava a quarta-feira de cinzas para vestir o roxo da quaresma, guardar jejum e abstinência de carne durante quarenta dias, os endemoniados se entregavam à esbórnia, na festa em que vale comer carne, muita carne, de todos os modos, crua e cozida. O diabo do imaginário cristão, como se tivesse saído do cortejo de algum Dioniso ou Baco, brincava nos seus três dias. E, abestalhado, eu não compreendia de que maneira o mais odiado personagem da mitologia cristã, Ele, O Satanás, virava palhaço, botando as unhas de fora sem arranhar ninguém.
Acho que amei o carnaval desde esse encontro, pelo absurdo representado nele. Amo um carnaval que não tem nada a ver com o frenesi compulsivo em que o transformaram, que não cumpre pautas de desfiles, não pertence a nenhuma instituição, nem faz girar a máquina caça-níqueis do turismo a serviço de estados, prefeituras e emissoras de televisão. Uma festa com o Demo reinando solto e confundindo a ordem estabelecida do mundo.
Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca, Livro dos Homens, Galiléia e Retratos Imorais.
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