Plínio Palhano*
Publicado no Jornal do Commercio
No século XVIII, na Espanha, era impossível não se declarar católico, até mesmo porque o Santo Ofício, o braço fortalecido da Inquisição — que exercia maior poder no século XVII —, ainda disposto ao ritual de julgamentos e a incitar a acender fogueiras nutridas de carnes humanas para iluminar a própria obscuridade, estava atento a qualquer deslize e sacrilégios dos cidadãos comuns e de pessoas que representavam importância na sociedade.
Era o caso de Francisco Goya y Lucientes, ou Goya, como o conhecemos, o genial pintor do rei Carlos IV, que se deixava apresentar como católico, mas, na verdade, de um catolicismo sem padres, sem frequência às obrigações nas celebrações das missas semanais e, no leito de morte, sem nenhum registro da presença de padre para confissão de seus pecados nem a extrema-unção tão desejada pelo fervor da crença, apesar de a história consolidá-lo como grande artista espanhol por também decorar igrejas representando santos e anjos e por pintar autoridades eclesiásticas.
Por pouco, o artista não foi perseguido pela Inquisição ao satirizar o mundo sacerdotal quando representou, em desenhos e em gravuras e água-tinta da série Los caprichos, com o olhar agudo e ácido, as cenas de vítimas daquele tribunal e personagens eclesiásticas glutonas, obscenas, hipócritas, que pervertiam o povo com as pregações de superstição e alimentavam o temor ao poder inquisitorial.
A lâmina 52 da mesma série, Los caprichos, diz claramente o que Goya pensava do mundo clerical: com o título O que um alfaiate pode fazer! — onde representa uma mulher ajoelhada numa atitude de prece diante de uma figura monstruosa, de braços abertos e, ao fundo, em silhuetas, outras personagens ajoelhadas a esse gigante envolvido numa batina clerical e, em suas mãos, brotam folhas, como um espantalho no campo a afugentar os corvos.
Com a sua visão humanista, permitia esse tom de ódio à Inquisição pelas imagens, e, numa delas, na lâmina 23, Aquelas partículas de pó está um herético, de cabeça baixa, sentado num palco acima da população presente a testemunhar a sentença definitiva do herege, com o gorro cônico da infâmia que o identificava. Outra, em que diz o título Sonho de certos homens que nos devoram, induz à interpretação pervertida daqueles homens da Igreja devorando o seu próprio rebanho, como no ritual sagrado que converte o sangue e o corpo de Cristo no sacramento da Santa Comunhão. E na gravura Ninguém nos viu, estão monges numa adega a se embriagar, quando pr egavam a abstinência, hipocritamente.
Goya, que não era um populista, também demonstrou a sua indignação pela multidão que acompanhava essas execuções públicas, como vemos na gravura Não teve jeito, na qual uma mulher montada em uma mula a caminho da fogueira é cercada por rostos desprezíveis e cruéis.
* Plínio Palhano é artista plástico
Era o caso de Francisco Goya y Lucientes, ou Goya, como o conhecemos, o genial pintor do rei Carlos IV, que se deixava apresentar como católico, mas, na verdade, de um catolicismo sem padres, sem frequência às obrigações nas celebrações das missas semanais e, no leito de morte, sem nenhum registro da presença de padre para confissão de seus pecados nem a extrema-unção tão desejada pelo fervor da crença, apesar de a história consolidá-lo como grande artista espanhol por também decorar igrejas representando santos e anjos e por pintar autoridades eclesiásticas.
Por pouco, o artista não foi perseguido pela Inquisição ao satirizar o mundo sacerdotal quando representou, em desenhos e em gravuras e água-tinta da série Los caprichos, com o olhar agudo e ácido, as cenas de vítimas daquele tribunal e personagens eclesiásticas glutonas, obscenas, hipócritas, que pervertiam o povo com as pregações de superstição e alimentavam o temor ao poder inquisitorial.
A lâmina 52 da mesma série, Los caprichos, diz claramente o que Goya pensava do mundo clerical: com o título O que um alfaiate pode fazer! — onde representa uma mulher ajoelhada numa atitude de prece diante de uma figura monstruosa, de braços abertos e, ao fundo, em silhuetas, outras personagens ajoelhadas a esse gigante envolvido numa batina clerical e, em suas mãos, brotam folhas, como um espantalho no campo a afugentar os corvos.
Com a sua visão humanista, permitia esse tom de ódio à Inquisição pelas imagens, e, numa delas, na lâmina 23, Aquelas partículas de pó está um herético, de cabeça baixa, sentado num palco acima da população presente a testemunhar a sentença definitiva do herege, com o gorro cônico da infâmia que o identificava. Outra, em que diz o título Sonho de certos homens que nos devoram, induz à interpretação pervertida daqueles homens da Igreja devorando o seu próprio rebanho, como no ritual sagrado que converte o sangue e o corpo de Cristo no sacramento da Santa Comunhão. E na gravura Ninguém nos viu, estão monges numa adega a se embriagar, quando pr egavam a abstinência, hipocritamente.
Goya, que não era um populista, também demonstrou a sua indignação pela multidão que acompanhava essas execuções públicas, como vemos na gravura Não teve jeito, na qual uma mulher montada em uma mula a caminho da fogueira é cercada por rostos desprezíveis e cruéis.
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