Assassino, detetive
e vítimas
Luciano Siqueira, no Vermelho
Brincadeira ingênua,
que embora antiga só agora conheci (indesculpável ignorância). Sorteia-se entre
os participantes os papéis de assassino, detetive e vítimas. Ao assassino cabe
"matar" as vítimas com um discreto piscar de olhos, tão discreto
quanto o necessário para driblar a vigilância do detetive. A este, na posição
de policial implacável, cumpre descobrir quem do grupo é o assassino e,
naturalmente, prendê-lo.
Minha estréia se deu
num grupo pequeno: Miguel, 8 anos, meu neto (quem mais se diverte a cada
lance), Pedro, 14 anos, o neto mais velho, Neguinha, mãe de Miguel, Luci e eu.
Se o grupo fosse maior, mais interessante e divertido seria. Assim mesmo demos
boas risadas, sobretudo com as trapaças de Miguel sempre esperto na hora do
sorteio, dando um jeito de ser ele o detetive.
Pude observar,
entretanto, com indisfarçável satisfação, que na família ninguém tem vocação
para a terrível arte de matar, tampouco para o mister de perseguir criminosos;
muito menos para se deixar abater na triste condição de vítima.
Pelo visto, o
mandamento divino, proferido por Moisés, "não matarás" aqui está
muito bem acolhido, embora nunca citado por absoluta falta de intimidade com as
Sagradas Escrituras. Descendentes de famílias muito católicas, mas não
exatamente seguidores.
Além disso, na
brincadeira, o assassinato se dá através de um piscar de olhos. Flagrante
contradição: o gesto tem tudo a ver com a cumplicidade ou o flerte ou a ironia,
jamais com o aniquilamento físico de alguém.
Quanto à função de
detetive, nada contra. Policiais são necessários. Policias devem existir, tais
como as Forças Armadas, integram o aparelho de Estado e, ao lado de sua
essência repressora em favor da classe dominante, têm também serventias
honrosas - a defesa da segurança do cidadão e a preservação da integridade do
território nacional diante de eventual ameaça externa. Mas o fato é que em
família de ex-preso político ninguém se sente atraído pelas profissões
militares ou policiais.
Vítimas todos nós
somos, de uma forma ou de outra. De injustiças sociais, de mal-entendidos, de
preconceitos, de equívocos, de viroses, do trânsito infernal, da burocracia
estatal, do custo de vida e não sei mais o quê da vida moderna. Mas a
brincadeira "assassino, detetive e vítimas" pressupõe que estas
últimas mantenham-se passivas, a espera do fatal piscar de olhos. Isso nunca! A
passividade jamais será atitude de nenhum de nós, curtidos pelo de esforço da
conquista cotidiana do que necessitamos e desejamos. Inclusive Alice, de menos
de cinco meses de vida, posta no berço ali no quarto, que solta a voz
estridente tão logo lhe vem a fome - para que Neguinha lhe ofereça o seio
materno e lhe sacie.
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