Chacina
Marco
Albertim, no Vermelho
A esplanada da usina amanheceu como todos os dias. A
terra seca, cinzenta, nua de seixos, com sulcos largos e vazios, cobriu-se de
umidade. Às cinco da manhã, o sol não desponta inteiro. O lusco-fusco
adensa-se, emprenha-se do cheiro avinagrado do canavial recém-queimado.
Às
vésperas da moagem, o verdor das palhas da cana sumira ou ressecara, nas chamas
que antecedem o corte. O cheiro juntou-se ao odor de cinzas do massapê seco,
ainda cimentando as raízes de cada touceira. Por último, o bodum do rio com a água
gelatinosa da calda da moagem do ano anterior, imiscuiu-se ao conluio dos
cheiros diversos. A esplanada dava a impressão de ter sido lavada pela chuva.
Mas os homens sabiam que os poros da terra só transpiravam seus miasmas.
Às
cinco da manhã, contrariando o costume, a chaminé da usina não soprou o negrume
do açúcar cozido. Os homens chegaram aos poucos, vindos de vilas espremidas
pelo canavial. Calçavam alpercatas, chinelos de borracha. Homens, mulheres e
crianças usando chitas desbotadas, chapéus de palha ou de feltros desfiados. As
crianças, descalças, olhos remelados, não se queixavam de fome, mas não se
amofinariam caso se deparassem com um prato de ágata entupido de cuscuz.
Eles
olhavam para cima, à espreita de uma porção, ainda que fina, de fumaça saindo
da chaminé. Mas o canavial fora queimado na véspera, e da largueza do plantio
desprendia-se vivo o cheiro da tisna deixada pelo fogo. Aqueles mesmos homens
tinham ateado fogo, de um lado e de outro das estradas de massapê entre o
canavial. Viram as chamas crescerem, crepitarem com a ajuda dos seixos miúdos
na crosta da terra, convertidos em carvão vegetal. As canas, finas, tinham um
bagaço grosso subindo à altura do meio do tronco. O bagaço logo transformava-se
em cinzas. O vento soprando-as devagar, misturando-as aos poucos insetos,
gafanhotos da cor da palha da cana, fugindo do calor intenso. Aqui e ali, uma
cascavel escafedia-se; o couro úmido deixando-se curtir na quentura do chão
lavrado. Muitas contorciam-se ali mesmo, estorricando-se até se confundir com
as raízes queimadas na superfície do chão. Depois da cana cortada, também os
restos dos répteis eram enfeixados e jogados na carroceria dos tratores, dos
caminhões.
Mas
não se ouvia o rugido da esteira conduzindo as canas para as moendas de dentes
longos e roliços, tampouco a espremedura chorosa dos troncos.
A
multidão inerte, olhando para cima, por fim procurou explicação nas duas
entradas sem porta, de acesso ao maquinário da produção. De onde estavam, só se
distinguia a escuridão da fuligem espalhada por anos a fio de produção sem
manutenção ou limpeza dos paredões laterais.
Ao
lado, as salas dos escritórios davam conta de um movimento incomum.
Funcionários bem vestidos, usando meias de seda e sapatos de couro, saíam de
uma sala para entrar noutra. Não se importavam com a multidão ocupando toda a
esplanada. O alambrado em cima dos muros de cimento, separava-os dos
cambiteiros de rostos suados.
Por
trás da multidão, o barracão da usina mantinha o comércio de costume. De onde
estavam, os homens e as mulheres não podiam sentir o cheiro do charque exposto
sobre sacos de algodão. Se apurassem os sentidos, no entanto, o azedume do
gordo jabá desceria por suas entranhas. Teriam se rendido ao festim da carne
distante, não fosse a aparição de um dos funcionários descendo os degraus de
salas contíguas; vinha para o portão principal, de saída ou de acesso ao lado
interno da esplanada. Debaixo do braço, carregava uma placa de madeira. Sem se
atrever a sair, pendurou a placa com a frente para o lado de fora; lia-se:
Moagem suspensa. Usina fechada para balanço.
Os poucos cambiteiros que sabiam
ler, explicaram para os outros.
- Não é verdade. A usina foi
vendida para outro usineiro. E o outro usineiro não vai pagar o nosso salário.
- E agora?
- Vamos entrar no escritório.
- Não precisa ir todo mundo.
Basta cinco pessoas.
Cinco camponeses entraram rumo
aos escritórios. O vigia se interpôs entre eles, mas nada pôde fazer, apesar de
portar na cintura um revólver calibre 38. Foram recebidos pelo dono da usina,
um homem de meia idade, baixo e sem chapéu na calvície por toda a cabeça. Não
se ouviu a conversa entre os cambiteiros e o usineiro. Ouviram-se cinco
estampidos de revólver.
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