Memórias do racismo na 'Folha' e na 'Veja'
Por Igor Fuser*, no Observatório da Imprennsa
A tragédia dos refugiados africanos que morrem
afogados na tentativa de desembarcar clandestinamente na Europa, tantas vezes
repetida, expõe em cada ocasião a mal-disfarçada indiferença da mídia
brasileira e "ocidental” perante as vidas de pessoas negras e pobres, em
comparação com as dos brancos, dos ricos, dos europeus. Ou alguém acha que se
os náufragos fossem franceses ou espanhóis o tratamento jornalístico seria o
mesmo?
Os recentes episódios me trazem à lembrança o
início da minha carreira como jornalista, na editoria de Exterior da Folha de
S.Paulo, na década de 1980. Certo dia, perguntei ao meu chefe, Caio Blinder,
por que um acidente de trem nos Estados Unidos, com cinco mortos, merecia mais
destaque nas nossas páginas do que uma enchente em Bangladesh, com dezenas de
milhares de mortos.
A resposta poderia ser incluída no Manual de
Redação do jornal, de tão didática. Em tom de brincadeira, Blinder me explicou
que vigorava na Folha a seguinte regra: 1 americano morto = 10 mil indianos
mortos.
II
Nas revistas semanais (assim como nas edições
domingueiras dos jornais), as reportagens de "comportamento” são, por
excelência, o espaço que a imprensa concede às pessoas comuns, ou seja, os
simples mortais que passam pela vida sem fazer ou se envolver em algo digno de
se tornar notícia.
Esses indivíduos são procurados, em certos casos,
como personagens para ilustrar, a título de exemplo, pautas da vida cotidiana,
como os preparativos dos jovens para o vestibular, um novo método de ginástica
nas academias ou as dificuldades para preencher a declaração do Imposto de
Renda. Como regra geral, esses depoimentos são acompanhados de fotos.
Na Veja, onde trabalhei de 1988 a 1997, assim como
no suplemento regional da revista em São Paulo, a Vejinha, era proibida a
inclusão de personagens negros ou mulatos nesse tipo de matéria. O veto – que
jamais apareceu por escrito, mas era do conhecimento de todos, e aplicado com
rigor – tinha como base um julgamento "estético”.
Quando algum editor, por descuido, incluía a foto
de um homem ou mulher de ascendência africana, a página era rejeitada pelo seu
superior, com uma ordem inapelável: "Vamos trocar esse personagem. Não
queremos gente feia”.
Se essa norma racista foi revogada depois, não
sei, pois nunca mais li a revista, desde que saí de lá. Uma questão de higiene
mental. Mas fica aqui a sugestão para que algum(a) estudante de Jornalismo em
busca de uma tema para o seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) faça a
pesquisa, comprovando ou desmentindo o que eu afirmei. As edições estão
disponíveis a todos.
III
No período em que trabalhei na Veja, como editor
de Internacional, uma das minhas tarefas era participar das reuniões de pauta,
que aconteciam nas segundas-feiras, às 11 horas. Nesses encontros, com a
presença de todos os editores e do grupo de comando de revista (diretor,
diretor-adjunto, redator-chefe), não se tomavam decisões. O objetivo era dar
elementos para que a direção montasse o primeiro projeto ("espelho”) da
edição que começava a se preparar.
As conversas fluíam em clima de grande
informalidade, e era comum ver os participantes se esmerando em fazer piadas e
observações engraçadas diante dos temas expostos pelos editores. O fato de ser
uma reunião a portas fechadas, em um grupo restrito, favorecia a expressão de
preconceitos e de ideias que, em outros ambientes, seriam censuradas como
"politicamente incorretas”.
Muitas vezes me cabia a ingrata tarefa de batalhar
por espaço para assuntos internacionais que tinham como foco lugares
periféricos, desconhecidos do grande público e também dos colegas, como Ruanda,
Cachemira ou o Sri Lanka. Esses rincões "exóticos” eram motivo de galhofa
nas reuniões de pauta da Veja. Nas primeiras vezes em que eu mencionei o nome
da Chechênia, conflagrada região no sul da Rússia, tive de ouvir em seguida uma
rajada de comentários maliciosos.
Em uma dessas ocasiões, nos idos de 1990,
apresentei como principal pauta da minha editoria um conflito relacionado com a
crise terminal da União Soviética, um dos grandes temas do período. O imbroglio
era complicado. Duas repúblicas soviéticas, a Armênia e o Azerbaijão, travavam
um guerra pelo controle de Nagorno-Karabakh, um território de população armênia
encravado no Azerbaijão.
Em meio às gozações de praxe, alguém perguntou
qual dos dois lados em conflito a Veja iria apoiar: os armênios ou os azerbaijanos?
Um dos editores, Eurípedes Alcântara, atual
diretor da revista, matou a charada com outra pergunta, seguida de uma
gargalhada geral: "Quem é o mais branco?”
*doutor em
Ciência Política pela USP e professor de Relações Internacionais na
Universidade Federal do ABC (UFABC).
Leia mais sobre temas
da atualidade: http://migre.me/kMGFD
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