A falência da
ideia de previdência privada
No debate sobre a Previdência Social, aparecem dois conceitos bem
distintos, uma demarcação clara entre quem raciocina pela ideia do dinheiro que
gera dinheiro e quem vê a questão por um ponto de vista social.
Por Osvaldo Bertolino, portal Vermelho
Por Osvaldo Bertolino, portal Vermelho
A proposta de
“reforma” da Previdência Social anunciada pelo governo do presidente leito Jair
Bolsonaro extingue o sistema de aposentadoria concebido como um projeto social.
O modelo de gestão por grupos privados e fundos de pensão de poupança
individual expõe em estado puro a frieza como os neoliberais veem e entendem o
mundo da economia. Para eles, é difícil aceitar, por exemplo, como os
trabalhadores rurais podem ter direito a um benefício para o qual não
contribuíram. É como se essas pessoas não participassem do processo de criação
de riquezas no país.
Muito falatório vem sendo investido, também, na repetição de que há gente demais no Brasil trabalhando sem contribuir para a Previdência Social, seja para terceiros ou por conta própria: 20 milhões, 25 milhões, 30 milhões, 40 milhões. Insiste-se nas cifras (que por sinal ninguém sabe direito de onde vêm) para contrabandear a ideia de que toda essa imensa massa de trabalhadores não pode ter direito à aposentadoria.
O argumento não se justifica nem pelo peso da conta dos benefícios — o principal motivo alegado pelos neoliberais — nas despesas do Estado. Mesmo aqueles com carteira assinada e contribuições rigorosamente em dia estão longe de receber algo que pudesse passar perto dessa justificativa — aproximadamente 80% dos aposentados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), responsável pelos benefícios concedidos a todos os celetistas e autônomos, ganham um salário mínimo por mês.
Outra falácia muito comum dos neoliberais é a de que esse modelo de benefício premia a ineficiência — como se a imensa maioria dos trabalhadores vivesse mais como cigarra do que como formiga. Roberto Campos, um dos papas do liberalismo no Brasil, chegou ao capricho de contar quantas vezes a Constituição de 1988 fala em garantias — 44 vezes —, em direitos — 76 vezes — e em deveres — 4 vezes. “A Constituição prometeu-nos uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos”, escreveu ele em seu livro de memórias, intitulado A Lanterna na Popa.
O papel do Estado
Essa é a essência da propaganda de “reforma” da Previdência Social. Formulações como “equação fiscal”, “fazer o Estado caber dentro de suas contas” ou “sistema oneroso para o contribuinte”, tão falsas quanto autoritárias, sustentam a propaganda catastrofista sobre o futuro da Previdência Social. Não entram, nessa conta, a proporção na distribuição de renda com base em quesitos como crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e elevação da produtividade.
Parece óbvio, mas no raciocínio dos neoliberais essa lógica cedeu lugar à crença de que os recursos que no futuro pagariam as aposentadorias devem incentivar atividades da economia do país. Sem a “reforma” da Previdência Social, dizem, não há como o país crescer. Eles sequer questionam se as fontes garantidoras da poupança advinda das contribuições ao setor serão suficientes para cobrir tanta responsabilidade.
Esse mantra nasceu com a reeleição de Fernando Henrique Cardoso (FHC) à Presidência da República, em 1998. Ele assumiu o segundo mandato pregando que teria uma missão urgente e vital: pôr fim ao crônico “desequilíbrio” das contas públicas, uma fragilidade ameaçadora dos chamados “fundamentos macroeconômicos”.
A questão toda se resume ao conceito de administração da macroeconomia. Sem cortar os benefícios concedidos pelo Estado, o governo terá dificuldades para manter o elevado superávit primário exigido pelos compromissos com o setor financeiro. Para cumprir esses “contratos”, o governo teria de romper o contrato social assumido pela sociedade com a Constituição de 1988. É aí que entra a diferença a respeito do papel do Estado entre progressistas e conservadores.
Renda satisfatória
Sistemas de aposentadorias movimentam recursos bilionários, fator que conta muito nas intenções dos neoliberais sobre a “reforma” da Previdência Social. Além das questões orçamentárias, essa fonte de dinheiro desperta a cobiça de poderosos conglomerados financeiros. O carro-chefe da previdência complementar no Brasil, os fundos de pensão fechados, responsáveis por 70% do mercado, também atuam com essa lógica.
A pergunta que deve ser feita é: até que ponto o segurado pode ter a garantia de que o contrato entre as partes será cumprido e de que não irá ocorrer algo semelhante ao que aconteceu no passado com os montepios? O fato de empresas de previdência privada serem hoje ligadas em sua maioria a grandes grupos financeiros não dá essa segurança. E mais: os proventos dependerão de fatores imponderáveis, que podem ser resumidos às incertezas quanto a evolução político-econômica do país.
Conta ainda o dado de que poucos trabalhadores podem pensar em uma poupança para a aposentadoria. Uma pesquisa do governo de 2006 mostrou um retrato alarmante — apenas 1% dos trabalhadores consegue manter uma renda satisfatória com a aposentadoria. A maioria sobrevivia com ajuda de parentes e amigos ou precisava continuar trabalhando de alguma forma.
Velhos ao penhasco
Segundo uma pesquisa realizada pela consultoria Target, de São Paulo, 4,4% da população ganham hoje na ativa acima de trinta salários mínimos. No entanto, cerca de 90% dos aposentados pelo INSS recebem até dois salários mínimos mensais. Os outros 10% recebem de três a dez. É fácil imaginar o que aconteceu com o nível de vida dos aposentados que pertenciam à faixa de maior poder aquisitivo quando estavam na ativa.
Projeções indicam que apenas 0,9% da população brasileira terá renda suficiente ao atingir os 65 anos de idade para poder usufruir uma vida agradável, sem preocupações financeiras e sem ter a obrigação de trabalhar. Os restantes 99,1% irão depender de familiares ou do recebimento de alguma pensão, em geral insuficiente para sobreviver com dignidade. Com a “reforma” neoliberal, essa dura realidade tende a piorar.
Em artigo publicado no jornal Valor Econômico, intitulado “Vícios e virtudes da economia globalizada”, Luiz Gonzaga Belluzzo diz que diante da proximidade da insolvência dos sistemas privados de aposentadoria, em âmbito mundial, é lícito suspeitar que “a única reforma possível da seguridade social no mundo vai contemplar métodos muito antigos de aposentadoria: atirar os velhos ao penhasco”.
Muito falatório vem sendo investido, também, na repetição de que há gente demais no Brasil trabalhando sem contribuir para a Previdência Social, seja para terceiros ou por conta própria: 20 milhões, 25 milhões, 30 milhões, 40 milhões. Insiste-se nas cifras (que por sinal ninguém sabe direito de onde vêm) para contrabandear a ideia de que toda essa imensa massa de trabalhadores não pode ter direito à aposentadoria.
O argumento não se justifica nem pelo peso da conta dos benefícios — o principal motivo alegado pelos neoliberais — nas despesas do Estado. Mesmo aqueles com carteira assinada e contribuições rigorosamente em dia estão longe de receber algo que pudesse passar perto dessa justificativa — aproximadamente 80% dos aposentados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), responsável pelos benefícios concedidos a todos os celetistas e autônomos, ganham um salário mínimo por mês.
Outra falácia muito comum dos neoliberais é a de que esse modelo de benefício premia a ineficiência — como se a imensa maioria dos trabalhadores vivesse mais como cigarra do que como formiga. Roberto Campos, um dos papas do liberalismo no Brasil, chegou ao capricho de contar quantas vezes a Constituição de 1988 fala em garantias — 44 vezes —, em direitos — 76 vezes — e em deveres — 4 vezes. “A Constituição prometeu-nos uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos”, escreveu ele em seu livro de memórias, intitulado A Lanterna na Popa.
O papel do Estado
Essa é a essência da propaganda de “reforma” da Previdência Social. Formulações como “equação fiscal”, “fazer o Estado caber dentro de suas contas” ou “sistema oneroso para o contribuinte”, tão falsas quanto autoritárias, sustentam a propaganda catastrofista sobre o futuro da Previdência Social. Não entram, nessa conta, a proporção na distribuição de renda com base em quesitos como crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e elevação da produtividade.
Parece óbvio, mas no raciocínio dos neoliberais essa lógica cedeu lugar à crença de que os recursos que no futuro pagariam as aposentadorias devem incentivar atividades da economia do país. Sem a “reforma” da Previdência Social, dizem, não há como o país crescer. Eles sequer questionam se as fontes garantidoras da poupança advinda das contribuições ao setor serão suficientes para cobrir tanta responsabilidade.
Esse mantra nasceu com a reeleição de Fernando Henrique Cardoso (FHC) à Presidência da República, em 1998. Ele assumiu o segundo mandato pregando que teria uma missão urgente e vital: pôr fim ao crônico “desequilíbrio” das contas públicas, uma fragilidade ameaçadora dos chamados “fundamentos macroeconômicos”.
A questão toda se resume ao conceito de administração da macroeconomia. Sem cortar os benefícios concedidos pelo Estado, o governo terá dificuldades para manter o elevado superávit primário exigido pelos compromissos com o setor financeiro. Para cumprir esses “contratos”, o governo teria de romper o contrato social assumido pela sociedade com a Constituição de 1988. É aí que entra a diferença a respeito do papel do Estado entre progressistas e conservadores.
Renda satisfatória
Sistemas de aposentadorias movimentam recursos bilionários, fator que conta muito nas intenções dos neoliberais sobre a “reforma” da Previdência Social. Além das questões orçamentárias, essa fonte de dinheiro desperta a cobiça de poderosos conglomerados financeiros. O carro-chefe da previdência complementar no Brasil, os fundos de pensão fechados, responsáveis por 70% do mercado, também atuam com essa lógica.
A pergunta que deve ser feita é: até que ponto o segurado pode ter a garantia de que o contrato entre as partes será cumprido e de que não irá ocorrer algo semelhante ao que aconteceu no passado com os montepios? O fato de empresas de previdência privada serem hoje ligadas em sua maioria a grandes grupos financeiros não dá essa segurança. E mais: os proventos dependerão de fatores imponderáveis, que podem ser resumidos às incertezas quanto a evolução político-econômica do país.
Conta ainda o dado de que poucos trabalhadores podem pensar em uma poupança para a aposentadoria. Uma pesquisa do governo de 2006 mostrou um retrato alarmante — apenas 1% dos trabalhadores consegue manter uma renda satisfatória com a aposentadoria. A maioria sobrevivia com ajuda de parentes e amigos ou precisava continuar trabalhando de alguma forma.
Velhos ao penhasco
Segundo uma pesquisa realizada pela consultoria Target, de São Paulo, 4,4% da população ganham hoje na ativa acima de trinta salários mínimos. No entanto, cerca de 90% dos aposentados pelo INSS recebem até dois salários mínimos mensais. Os outros 10% recebem de três a dez. É fácil imaginar o que aconteceu com o nível de vida dos aposentados que pertenciam à faixa de maior poder aquisitivo quando estavam na ativa.
Projeções indicam que apenas 0,9% da população brasileira terá renda suficiente ao atingir os 65 anos de idade para poder usufruir uma vida agradável, sem preocupações financeiras e sem ter a obrigação de trabalhar. Os restantes 99,1% irão depender de familiares ou do recebimento de alguma pensão, em geral insuficiente para sobreviver com dignidade. Com a “reforma” neoliberal, essa dura realidade tende a piorar.
Em artigo publicado no jornal Valor Econômico, intitulado “Vícios e virtudes da economia globalizada”, Luiz Gonzaga Belluzzo diz que diante da proximidade da insolvência dos sistemas privados de aposentadoria, em âmbito mundial, é lícito suspeitar que “a única reforma possível da seguridade social no mundo vai contemplar métodos muito antigos de aposentadoria: atirar os velhos ao penhasco”.
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